(Texto retirado do site Benebell Wen, de autoria da própria e traduzido por Ravn. Assim como Wen, também me sinto fascinado com as semelhanças entre as religiões pagãs européias e as populares asiáticas e gostaria muito que o painel de debate proposto no texto ocorresse. A visão de paganismo da autora é enviesada principalmente por correntes modernas, podendo conflitar com a apresentada por mim aqui no Platinorum – conforme é avisado por ela, trata-se de um ponto de vista externo.)
Eu não tenho os graus acadêmicos que me qualificariam para escrever sobre qualquer uma dessas coisas, então por favor entendam que estou escrevendo minhas observações dentro de um contexto não-especializado. Recentemente tenho estado fascinada com sistemas de crença pagãos e neo-pagãos, principalmente por como o paganismo é surpreendentemente similar a religião popular chinesa baseada no taoísmo.
(Imagem destacada: uma Roda do Ano neo-pagã e um calendário astrológico chinês)
Eis como eu entendo paganismo em contexto: antigamente na Europa, as religiões abraâmicas ascenderam ao domínio, se tornaram institucionalizadas, e começaram a estabelecer corpos de autoridade centralizados que frequentemente começavam em cidades e espalhavam sua influência a partir delas. Às margens da zona rural, porém, fés pagãs resistiram entre a minoria. Essas fés pagãs eram politeístas, embora panteístas, fortemente baseados na natureza, e como acreditavam que tudo está conectado, através de certas ervas, encantamentos verbais, conduta ritualística e representações de elementos poderiam ser empregados para manifestar intentos – em outras palavras, magia existe.
Substitua algumas especificações do parágrafo anterior e será possível aplica-lo para a relação entre o confucionismo (e em grande extensão o budismo) e religiões populares chinesas. Essas religiões populares eram tomadas da mesma forma que o cristianismo tomava o paganismo. Aqueles que praticam alguma forma de paganismo ou neo-paganismo (como wicca, druidismo, heathenry ou qualquer outra forma de reconstrucionismo) tendem a manter suas fés escondidas ou estritamente privadas. Isso é menos que um problema entre aqueles que praticam religiões populares chinesas, então você verá altares montados em negócios chineses que ainda prestam homenagem a fé de seus ancestrais (frequentemente agrários). Porém, assim como o que pagãos experienciam, aqueles que ainda praticam religiões populares chinesas são considerados marginais.

Como fés abraâmicas são monoteístas e fés pagãs politeístas, as tensões ideológicas entre a maioria e a minoria são maiores no ocidente. Na China e na maioria das culturas predominantemente chinesas (estou pensando em Taiwan e Hong Kong aqui), a maioria e a minoria são ambos politeístas porém de visão panteísta, então pode ser menos uma tensão ideológica e mais uma distinção de classe social ou status.
[E por panteísta aqui quero dizer que essas fés orientais tendem a acreditar que as divindades e todos nós estamos interconectados em uma grande divindade imanente coletiva. Não é tão diferente do monoteísmo, exceto que ao invés de ver um único e verdadeiro Deus como uma entidade separada e independente além de nós, essas fés panteístas vêem Deus como totalmente abrangente. Tudo a nossa volta incluindo nós mesmos é parte de Deus. O coletivo “nós” é Deus. Um é tudo e tudo é um.]
Outra observação interessante: quando o cristianismo foi integrado à China pela primeira vez por missionários ocidentais, o termo Shang Di foi tomado das religiões populares e usado por eles para denominar o Deus Cristão. Antes do empréstimo, Shang Di já tinha uma identidade, como o Pai Celestial. Eu poderia o comparar com Zeus, um líder de certa forma entre muitas divindades. Isso mesmo, muitas divindades. Acredito que os primeiros missionários confundiram o conceito de Shang Di e seguindo sua percepção adotaram palavra para detonar o único deus cristão. Consequentemente, hoje quando falamos Shang Di pensamos no Deus Cristão em oposição do Pai Celestial da religião popular chinesa. (Já escutei que praticantes pagãos/neo-pagãos, também, possuem problemas com como o cristianismo integrou várias práticas e celebrações pagãs na cultura cristã ao ponto que hoje, o mainstream popular vê esses costumes como estritamente cristãos e se esqueceram da herança pagã.)
Emergindo de uma visão panteísta veio a prática mágica e os trabalhos energéticos. Como tudo possui energia espiritual dentro de si e existem diferentes funções para diferentes energias, cada aspecto do mundo material possui um componente espiritual correspondente que poderia ser utilizado com a intenção de fazer magia acontecer.
Eis aqui outra similaridade interessante. Já ouvi praticantes pagãos enfatizar a diferença entre wicca e bruxaria. A Wicca (novamente, apenas como eu entendo e o que eu sei) é uma fé, mas aderir à wicca não significa praticar bruxaria. A bruxaria é essencialmente a prática de magia e trabalhos energéticos, acreditando que nossas vidas consistem de energias elementais relacionadas ao ambiente em nosso entorno e elas podem ser acionadas de tal forma que pode ser positiva ou negativa para influenciar nossas vidas. Por favor acreditem em mim, eu sei que não é bem isso, mas não estou escrevendo um tratado histórico ou acadêmico aqui. O ponto é que magia cerimonial é distinta da fé, embora com certeza a maioria das crenças se voltará a prática de bruxaria ou magia cerimonial.
Levanto esse ponto porque ocorre o mesmo com as religiões populares. Muitas das comunidades chinesas baseadas em agricultura seguirão algum séquito ou linhagem de religião popular e frequentemente eram ecléticos, uma mistura de espíritos locais e divindades menores, acrescido da iconografia emprestada do taoísmo, budismo e hinduísmo. Veneram as divindades particulares de sua fé e participam dos costumes e práticas de sua religião, mas não necessariamente estão envolvidos com práticas de magia. Então você tem os sacerdotes taoístas e outros que seriamente praticam magia taoísta, conjuram feitiços, mexem com alquimia, acreditam nos significados metafísicos da lua e das estrelas e, é claro, fazem previsões. Como a distinção enfatizada por pagãos entre wicca e bruxaria, há uma distinção similar aqui entre a religião popular chinesa e a magia cerimonial taoísta. Dito isso, a razão de serem frequentemente confundidos é porque tipicamente aqueles que praticam a fé também praticam magia.

O cristianismo, que é a fé maioritária no ocidente, geralmente olha severamente para a magia cerimonial e tende a impor sua noção de que magia é ruim, eles vilanizam praticantes de magia. O budismo no oriente pode rejeitar a magia cerimonial, porém não vilaniza o praticante. O budismo e o que irei me referir como a própria sociedade chinesa, ou aqueles que se consideram elucidados e educados, desdenham da religião popular e vêem tais práticas como superstições e seus praticantes como caipiras do meio do mato. Eu não sei o que é pior ou se pode ao menos haver comparação – demonizar fés pagãs ou desdenhar condescendentemente das religiões populares chinesas, um simplesmente falando “você é burro” enquanto outro acusa você de ser maligno, porém esta é outra forma que as duas culturas divergem.
(Ah, mas quando os missionários cristãos chegaram na China, as coisas mudaram. Cristãos chineses demonizariam as religiões populares, e não ajudava que a maioria dessas religiões populares e suas práticas mágicas costumam a incorporar a cor vermelha, o que de alguma forma justificou o pressuposto cristão de que essas religiões populares seriam demoníacas…)

Agora, voltando para as religiões populares. Essas religiões vêm em uma variedade de formas e diferem de região para região, cada uma com seus próprios espíritos locais e divindades preferidas para veneração primária. Algumas divindades de “nome grande”: há Tu Di Gong, por exemplo, uma divindade da terra popular entre comunidades agrárias; Guan Gong, um grande guerreiro que foi posteriormente deificado; Matsu, uma figura materna deusa do mar venerada em muitas comunidades pesqueiras no sul; e Lei Gong, um deus do trovão e da justiça. Praticantes de magia taoísta frequentemente evocam Lei Gong para buscar vingança ou intentos punitivos. Há ainda especulação de que Lei Gong é uma reinterpretação de Garuda da mitologia hindu. Kuan Yin, tomada do budismo, é também tipicamente venerada por várias facções das religiões populares, especialmente por mulheres.
Novamente, isso é meramente arranhar a superfície da hierarquia de divindades. Além das que nomeei, há um incontável número de divindades menores e espíritos que são específicos de uma província particular ou região da China. Os espíritos dos ancestrais também podem ser evocados. Como no paganismo e neo-paganismo no ocidente, essas religiões populares chinesas são diversas e difíceis de indexar em absolutos. Magia cerimonial taoísta também não pode ser definida, porque existem incontáveis linhagens e cada uma terá seus próprios rituais, abordagens e estilo para trabalhos energéticos, e etc.

Porém, agora no século 21, está acontecendo um reavivamento das religiões populares chinesas entre pessoas altamente instruídas que (1) notam que isso é um laço confortante de volta a suas linhagens ancestrais, e (2) acham que a abordagem panteísta, eclética e baseada na natureza é mais apelativa que a forma dogmática e institucionalizada de religião. (Isso não soa como algumas escolas reconstrucionistas de paganismo?) Há também um reavivamento da magia cerimonial taoísta, assim como a bruxaria e magia cerimonial entre comunidades pagãs.
Na magia cerimonial taoísta, rituais elaborados são conduzidos envolvendo alterar os sentidos físicos das experiências ordinárias, significando que certos incensos são usados, objetos ritualísticos especiais, enunciados sagrados em rimas em línguas antigas, roupas especiais e manipulando o cenário de forma a alterar a consciência dos participantes. O espaço sagrado é importante, tipicamente um altar, que é montado de frente a um ponto cardeal específico que varia de linhagem para linhagem. Em frente e no centro haverá uma estátua, imagem ou similares da(s) divindade(s) veneradas pelo magista. Velas são presentes em ambos os lados, incenso no centro e na frente do incenso, as oferendas. Em ambos os lados podem haver facas ou adagas de significação espiritual particular, sinos, blocos para divinação e outras parafernálias. A água usada precisa ser consagrada. O momento de execução de certos rituais é ligado a fases lunares e astrologia.

E caso você fique confuso aqui por um minuto e pensou que eu ainda estivesse falando sobe paganismo ocidental, ah não, estou falando das religiões populares chinesas taoístas e suas abordagens mágicas. Curiosamente similar, não é?
E as semelhanças continuam. Muitas práticas pagãs/neo-pagãs incluem uma adaga ritual que chamam de athame. Muitos magistas taoístas incluem uma adaga ou espada ritual usada para manipular energia invisível metafísica que se acredita estar presente durante o ritual ou para romper energias maléficas e limpar o espaço sagrado. Neo-pagãos incorporam o tarot em suas práticas, magistas taoístas usam o yijing. Magias cerimonais tanto orientais quanto ocidentais praticam algum tipo de alquimia. Alquimistas de ambas as culturas estão em uma busca pela imortalidade e começaram antigamente com experimentações usando chumbo e mercúrio.

Muitas fés pagãs lançam um círculo antes de começar um ritual. As energias espirituais que elas trabalham são convidadas ou chamadas para dentro do círculo. Nessas práticas populares taoístas, a montagem do altar é importante. Em muitas linhagens, o magista possui um selo que é ligado como uma chave para conectar o altar ao mundo espiritual. A chave precisa estar presente para ativar o altar e abrir o dito portal para reinos invisíveis. Certas palavras devem ser proclamadas e gestos particulares ou movimentos ritualísticos são incorporados.

Na maioria das práticas pagãs, conforme entendo após o lançamento do círculo os quatro quadrantes são chamados, ou Torres de Vigília onde os quatro guardiões dos pontos cardeais são evocados. Isso é muito doido! Magistas taoístas têm isso também. Eles são chamados de Quatro Guardiões: a Tartaruga Negra do Norte, a Fênix Rubra do Sul, o Dragão Azul (algumas linhagens dizem que o dragão é verde) do Leste e o Tigre Branco do Oeste. Em algumas linhagens mágicas, os quatro guardiões não são referidos como animais totens, no lugar sendo convocadas divindades menores. Também na magia cerimonial taoísta, tanto o círculo quanto o pentagrama são significativos. O círculo representa o ciclo de manifestação entre os Cinco Movimentos (Wu Xing) enquanto o pentagrama representa o ciclo de transformação.

Hoje com todo o intercâmbio cultural que ocorre, é até mais difícil determinar o quê vem de onde. Um monte de práticas que eu vejo wiccans fazendo em torno de suas casas durante seus sabbats soam muito como o feng shui para mim. Uma uma vassoura especial exclusivamente para “limpar” energias negativas ou estagnadas de um quarto balançando ela pelo ar, tomando cuidado para que nunca toque o chão? Talvez não usemos uma vassoura exatamente, mas isso é feng shui. Nós optamos por sinos ou blocos de madeira.
O paganismo consiste em uma grande variedade de tradições. Similarmente, religiões populares chinesas abrangem um espectro diverso de sistemas de crença. Eles não têm um texto sagrado identificável como a Bíblia, a Torá ou o Alcorão. Eles são politeístas, ainda que panteístas, acreditando que na profundeza das coisas, todos somos um. Por causa dessa crença na unicidade, há uma forte veneração à natureza, já que as formas naturais contém componentes do Espírito e esse Espírito pode nos guiar e empoderar.
Seria uma troca incrível e esclarecedora se um painel de pagãos e praticantes das religiões tradicionais chinesas pudesse se reunir e abrir diálogo. Tentei encontrar informações sobre tal convergência porém não encontrei nenhuma. Se algum de vocês aí fora sabem mais que eu, por favor compartilhe.
-por Benebell Wen