Levítico 18 e o sexo

Alguns pontos rápidos:

Primeiro: é um texto de — pelo menos — 25 séculos atrás.

Segundo: não se lê Levítico 18 sozinho (ou Vaiykrá 18). O capítulo faz parte da Parasha Acharê, na qual fazem parte os capítulos 16, 17 e 18. Esses capítulos apresentam uma série de mandamentos (mitzvot) positivos e negativos. Ou seja, diz o que um judeu deve e não deve fazer.

Terceiro: “Ein apotropos le arayot— ninguém é guardião da sexualidade de ninguém.

Na mesma lista da Parasha Acharê estão: o serviço especial de Yom Kipur, incluindo o sacrifício do bode a Azazel; comer sangue de animal ou comer de um animal encontrado morto; deixar as tradições do Egito para trás, obedecer às novas leis; não fazer sexo com parentes próximos (pais, sobrinhos, tios, parentes por casamento), nem com a própria mulher no período de menstruação; não entregar os filhos para sacrifício (a Moloque); não deitar com homem “como com uma mulher”, não fazer sexo com animais.

A 350a. mitzvah negativa é “(Você) não deve se deitar com um homem como com uma mulher”.

Primeiro, o leitor (Você) é um homem. A sexualidade das mulheres não está tratada aqui. Uma mulher poderia se deitar com outra mulher sem problema, porque os judaísmo era (talvez ainda seja?) essencialmente machista e não se importou em estabelecer regras para as mulheres.

Mais tarde, alguém veio a interpretar que a relação sexual mulher-mulher seria proibida pela frase “Não seguirás as condutas do Egito”. Essa frase poderia ser sobre escravidão ou sobre politeísmo. Mas é claro que alguém interpreta como sendo sobre sexo.

Mas voltemos à 350a mitzvah negativa. A frase em si deixa muito para interpretação, não? Os judeus mais ortodoxos proíbem que dois homens dividam um cobertor, porque isso seria “deitar com um homem como com uma mulher”. Mas o grande Rashi, autor dos comentários mais conhecidos sobre a Torah, indicava apenas que o problema seria o sexo anal.

Considerações importantes:

O texto indica punições de morte para quem comer sangue e de expulsão para quem se alimentar de animais encontrados mortos. Mas não indica punição direta para homossexuais.

Existe comentários dizendo que os dois homens que tiverem relações sexuais devem fazer um único sacrifício (não são duas punições, uma para cada; só a mesma para ambos). E infere-se que seja a mesma punição para “desperdiçar sêmen”. Ou seja, masturbação. Esse sempre foi um grande problema para a cabala. O sexo é feito para ter filhos, se o sexo não for feito com essa intenção, ele é só desperdício. Todo tipo de sexo.

Mais importante: o Talmud traz a noção de Ein apotropos le arayot. Essa frase é evocada em algumas discussões importantes. Duas delas pertinentes aos nossos tempos. A frase tem o sentido de:

  1. Ninguém controla a própria sexualidade
  2. Ninguém pode julgar a sexualidade dos outros

O primeiro ponto é uma versão mais que centenária do que se fala sobre “todo homem é um estuprador em potencial”. O judaísmo entende que qualquer um pode se sentir atraído sexualmente por outra pessoa, que não há controle sobre esse sentimento exceto talvez não olhar para outra pessoa. É comum essa tradição em comunidades ortodoxas em que os homens são proibidos de olhar diretamente para mulheres por quem possam se sentir atraídos sexualmente (mulheres com pouca roupa ou mesmo bailarinas, artistas que estejam fazendo algo artisticamente belo). Nós consideramos hoje que um pênis pode enrijecer com por coisas simples como variação de temperatura. Mas leituras mais ortodoxas da Torah não levam em conta o motivo, apenas o efeito. Logo, cuida-se para que não aconteça qualquer tipo de excitação indesejada (ou desnecessária).

O segundo ponto é que nós não somos as pessoas a controlar ou julgar a sexualidade dos outros. Se não controlamos a nós mesmos, também não controlamos como os outros fazem sexo, quais seus impulsos ou mesmo suas ações em casa e na cama.

E mesmo que consideremos a relação homossexual seja mesmo considerada impura, na cabala, é algo que se resolve com um bom banho.

Não use minha Torah para justificar teu ódio,

Shbaa.

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2 Comentários

  1. Muito interessante! Uma outra visão aos meus conhecimentos. Show de bola! Mas segundo a Torah a relação sexual entre o mesmo sexo seria abominável, no entanto na cabalá, se resolve com um banho? Na cabalá teria o mesmo peso de comer algo impuro e no final é esperar o entardecer e tomar um banho? Devido o pouco conhecimento que tenho, eu imaginava que a cabalá seria o casamento perfeito com a Torah.

    1. Pergunta muito pertinente. Na Torah, a palavra abominação (Toevah) é usada especificamente no versículo sobre relação homossexual masculina e repetido no final do capítulo sobre todas as proibições. Mas a palavra Toevah tem significado muito mais a ver com RITUAL. No capítulo seguinte (Levítico 19) a palavra é usada para descrever “comer a oferenda no terceiro dia”. Quer dizer, o cordeiro é sacrificado e serve de comida no primeiro dia. Se sobrar, pode-se comer as sobras no segundo dia, no terceiro dia não pode mais: “é uma abominação e não será aceito”.

      Dá pra notar que a palavra tem muito mais a ver com o ritual do que com alguma punição divina?

      Minha referência ao banho é comparação especificamente com a menstruação. As regras que tratam menstruação são chamadas de Nidah, e é o mesmo conjunto de regras que trata do que é chamado diretamente de Toevah/Abominação na Torah. Outra abominação: comer sangue de animal. A Torah e a Cabala dizem que a pessoa que come sangue de animais.

      O judaísmo tem regras rígidas para proibir a ingestão de sangue animal, a carne deve ser preparada para remover todo o sangue. Comer sangue é abominação e é tratado pelas leis de Nidah. Quem come sangue de animais sobre uma ira divina, morre cedo e é separado dos seus familiares no “mundo vindouro”. Terrível!

      Exceto se a pessoa fizer rituais de purificação…

      “Abominação” é uma palavra de caráter ritualístico. A palavra Toevah tem significado de “repúdio”, no sentido de “fazer com que sintam repulsa de quem é abominável”, mas também de “separação”, obrigar que os “abomináveis” sejam separados dos puros… Quem faz algo abominável não pode participar de rituais no Templo, assim como a mulher menstruada não pode participar de rituais no Templo. Mas, uma vez feitos os rituais de purificação, todos podem voltar aos rituais.

      Enrolei demais?

      Shbaa.

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