Meu primeiro Golem

Meu filho pediu que eu enchesse um balão. Buscou a canetinha do estojo do colégio. Desenhou um rosto e escreveu o próprio nome no balão. Ele me disse que iríamos brincar de esconder, e eu não saberia qual era o balão e qual era ele.

Ok. A primeira imagem que me veio à mente foi o “decoy” de ToeJam & Earl (aí está minha idade).

Mas, em seguida, enquanto ele brincava com o balão, fiquei pensando sobre quão básico é o conhecimento da cabala, que uma criança consegue reproduzir.

O nome é a identidade do objeto. Quando meu filho, aos cinco anos, coloca seu próprio nome em um balão, o balão assume sua identidade. Não importa a forma, as cores ou outras propriedades do objeto. Essa é a essência do objeto. E essa identificação está programada em nossos cérebros (ou nossa alma, depende do que vocês acreditam).

Golens são um assunto recorrente aqui no blog e na cabala em geral: a criação de um ser vivo através da vontade do cabalista. Mas talvez a maior dificuldade não seja fazer com que o monte de barro se torne homem, mas fazer com que o monte de barro deixe de ser um monte de barro.

Nós todos vimos aquele filme. O aprendiz chega no ateliê do mestre, carrega uma Bíblia, uma Livro das Sombras, um objeto mágico guardado com todo cuidado. O mestre dia “Eu estava procurando por isso” e usa o livro, a varinha, o escudo do Capitão América como calço de mesa. Ou peso de papel. O objeto muda de finalidade só quando a mente desconstrói a função pré-concebida.

Aquilo não é um objeto mágico. Aquilo é um peso de papel. Uma coisa que tem peso. Ou antes, só massa.

Nossa capacidade de enxergar objetos pela sua forma, antes de sua finalidade, é talvez o contrário de tudo que cabala ensina. Na cabala, o objeto tem uma finalidade essencial, até primordial. A finalidade do objeto vem antes do objeto em si. O objeto nasce para cumprir aquela função. Nossa “verdadeira vontade” (maiúsculas opcionais) é enxergada como algo que existe antes de nós existirmos e que guia nossas ações para um mundo ideal.

Mas essa função só existe quando enxergamos o todo. E por “todo” precisaríamos enxergar todo o Tempo também. Só quando terminou é que a finalidade se torna evidente. (Convenhamos que é muito fácil dizer que Van Gogh nasceu para ser pintor depois de ele ter falecido e seus quadros terem encontrado quem os valorizasse.) Mas nós não enxergamos todo o tempo. Também não enxergamos o objeto inteiro — visto que o tempo observável faz um recorte do objeto.

Proponho um exercício. Descreva o objeto a sua direita sem usar nomes. Na verdade, seja o menos “objetivo” possível.

À direita do meu computador, eu tenho esse objeto feito de material reflexivo. Um pouco fosco, um pouco riscado. Desgastado. Eu o uso para voltar para casa. Pesa mais que meu relógio, mas menos que meu sapato. Sem ele eu sou um sem-teto. O material é duro, mas ele balança e se bate no meu bolso. Faz um som de estrelinhas, de campainhas mercearia, de pegadores de sonhos. É frio, mas eu esquento com o calor da mão. Posso usá-lo para riscar todo tipo de coisa, como madeira, calçada e o carro de quem estaciona bloqueando minha vaga no supermercado. Mas não risca meus dedos. Eu recebi esse objeto um pouco antes de me casar, já o troquei diversas vezes — porque quebra — mas ainda assim é, na prática, o mesmo. Porque eu sempre uso o mesmo nome para ele.

Um objeto, assim desnorteado, pode ser qualquer coisa? Pode servir para qualquer coisa?

Tenho certeza de que vocês concordam que ele agora é muito mais propenso a receber valores simbólicos ou cargas emocionais. Não é mais um objeto mas uma soma de qualidades sem nome. A palavra que eu vier a usar para nomear o objeto com certeza lhe conferirá uma importância além do substantivo profano com o qual a gente se refere a ele no dia-a-dia.

Cabala também é isso. Cabala pede um novo olhar para o mundo a todo tempo. Há finalidades essenciais, sentidos intrínsecos para a existência de todas as pessoas e todos os objetos. Mas, para encontrá-los, o cabalista precisa desver os objetos. Desver os nomes dos objetos.

A essência, afinal, não está nas superfícies.

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