Retomo um tema que passamos rapidamente em outro post.
Na interpretação ortodoxa de Bereshit/Genesis, D’us criou o mundo em 6 dias, mas os “dias” não eram o que conhecemos até o nascimento de Adão. O tempo só nasce com o primeiro ser humano, pois o tempo não precisa ser contado por nenhuma outra criatura. E o primeiro humano não é um judeu, mas o primeiro sacerdote, ou antes, o primeiro xamã.
A cabala tenta conciliar diversas interpretações da Torah, no sentido de manter coerentes com a ciência vigente, ao mesmo tempo em que sustenta as interpretações “reveladas” pelos antigos rabinos cabalistas.
Dentre essas leituras diversas conciliadas, chegamos à ideia do primeiro Homem:
Em Bereshit/Genesis, lemos que D’us juntou o barro, moldou e soprou, e dali fez Adão. Voltemos uns parágrafos. Havia Escuridão (choshek) antes de D’us criar a Luz já falamos sobre isso. Mas, como “escuridão” como conhecemos é sombra, é interpretação comum que a Escuridão (choshek) deveria ser outra coisa (simbolicamente ou mesmo literalmente).
Sendo assim, seguimos a mesma interpretação para falar sobre os “dias”.
Os “dias” só existem porque são contados pelos seres humanos. Antes de os seres humanos existirem, antes do “sexto dia”, os dias podem ser qualquer coisa. Anos, milênios, Eras, Aeons…
Também falamos assim para conciliar o barro.
D’us pode ter juntado barro com as mãos, como pensamos na interpretação literal. Mas barro pode ser outra coisa, como simbolicamente “água” e “terra”, quando D’us sopra “ar” e dá vida ao objeto inanimado.
Ainda falta o fogo, ou a ligação com o divino.

A definição de xamanismo é de Mircea Eliade (1907–1986), especialista em História das Religiões. Ele ficou impressionado como várias práticas de “êxtase” eram similares em religiões em torno do mundo. Em especial, entre povos da Sibéria, Austrália e Amazônia. O termo em si é da língua manchu-tungu e está ligada à raiz de “conhecimento”.
No judaísmo, Adam haRishon (Adão, o Primeiro; chamado assim para não confundir com Adam Kadmon, o Primordial, outro nome para a árvore da vida completa), o primeiro homem é também o primeiro ser a ter contato direto com D’us.
Antes dele, poderíamos muito bem ser descritos como macacos, primatas, animais. Antes dele, não havia contato entre os seres e o Criador. Adam cria a ligação entre Céus e Terra.
O transe em si não é estranho ao judaísmo, mas aparece em referências obscuras. Como os estudos de Chayim Vital, também já tratados aqui (com indicação de exercício).

Não é objetivo de nenhum judeu tomar para si o xamanismo enquanto religiosidade de outras culturas (até porque Adam HaRishon não era judeu). O meu objetivo aqui é compreender o judaísmo comparativamente. Dou outro exemplo:
No meu Estado, houve uma tentativa de se punir as religiões de matriz africana (e assemelhadas das quais me faltaria uma denominação correta), por puro preconceito, tornando ilegal o sacrifício de animais para fins religiosos. “Especificamente” para fins religiosos, eu diria, porque era assim tratado no projeto de lei.
Não cabe a lei em si, houve diversas tentativas de se aprovarem leis semelhantes com textos ligeiramente diversos. O importante é que a lei que proibir o sacrifício de animais no Candomblé proíbe também no judaísmo.
A carne no judaísmo é obtida de animal preparado para isso, há uma bênção durante o processo, o sacrifício do animal é executado por um judeu preparado para tal, o processo é revisado por um rabino preparado para tal, o sangue é escoado, a carne é limpa, quaisquer sinais de doença ou sofrimento do animal inviabilizam seu uso para alimentação. A carne deve ser consumida após o ritual, acompanhada de mais uma bênção e com a devida demonstração de respeito ao alimento.
Qualquer um que pratique uma religião em que há sacrifícios de animais conhece esse processo.
A questão aqui é que, se temos origens em comum, raízes históricas ou apenas raízes de “memória”, como a memória judaica, viemos a partir de um tipo de ligação e culto válido. Quem acredita no judaísmo, e – suponho – nos posteriores cristianismo e islamismo, deve acreditar que o pajé tem a mesma ligação com D’us. Senão a ligação de um judeu, a ligação ainda mais antiga, a de Adão.