e o D’us hebraico ama perder uma discussão
Eu acho que talvez só os italianos afrontem seu deus de modo comparável aos judeus. Os italianos insultam, gritam, blasfemam até, acusando o deus cristão de ser um obstáculo à felicidade. Deus porco. Deus cão. Já os judeus resmungam de forma insessante, como quem reclama dos desmandos de um irmão mais velho que ficou no lugar do verdadeiro pai.
E a memória judaica traça essa mania de reclamar de D’us desde o quarto dia da criação, para ser exato, quando o Sol e a Lua foram criados.
Kvetch é o nome ídiche para essa resmungadora crônica, alguém que reclama de tudo, a pessoa que nunca está satisfeita e faz questão de verbalizar para todo mundo.
O imaginário judaico está cheio de kvetches. Boa parte dos kvetches discutem até mesmo com D’us. E, para completar, o D’us hebraico ama perder uma discussão. Essa é parte da evolução do judaísmo, deixando de ser uma religião profética para confiar na capacidade humana de pensar sobre as leis.
Era o quarto dia…
No quarto dia da criação, D’us criou o Sol e a Lua. Vocês podem ler sobre isso em Bereshit/Genesis 1:16. O que não está escrito lá é a discussão que se seguiu. Ela foi registrada, talvez com palavras mais pomposas do que as que realmente foram ditas, no Talmud (Chullin 60b). Foi mais ou menos assim:
D’us criou o Sol e a Lua — os dois do mesmo tamanho — e mandou que ambos iluminassem os Céus. A Lua, sendo uma kvetch de nascença, saiu falando:
— Senhor do Universo, podem dois reis usar a mesma coroa?
D’us rapidamente respondeu:
— Então, te encolhe, ora.
— Senhor do Universo, como assim? Só porque eu disse uma coisa certa, eu devo me diminuir?
— Tudo bem. Eu vou deixar que tu reine sobre o dia e sobre a noite. O Sol reinará só sobre o dia.
— Grande coisa! De que serve uma lâmpada de dia, quando está claro com o Sol?
— O povo de Israel vai calcular o tempo conforme tuas fases — disse D’us, se referindo ao calendário judaico.
— Não só por mim. As estações, eles vão calcular a partir do grande Sol. Eu, a pequena Lua, nunca vai fazer nada sozinha.
D’us abriu um buraco no tempo e deixou que a Lua espiasse o futuro.
— Olha. Muitos sábios serão conhecidos como “pequenos” iguais a ti: Samuel, o Pequeno; Jacó, o Pequeno; Davi, o Pequeno… — D’us até se esforçava, mas a Lua fazia beiço pendurada nos Céus.
— Ok. Ok. Quero que tu veja uma coisa do meu ponto de vista.
D’us fez a Lua dar um passo atrás. Ou algo parecido com isso. O tempo, sumiu, girou e começou a se mexer para trás. A luz do Sol que batia na Lua passou a se mover da Lua para o Sol.
— Viu? Pra mim, vocês são iguais. De onde eu estou, eu não vejo o tempo. Eu vejo todo o movimento como uma coisa só. Se vocês fossem exatamente iguais, não haveria movimento. E nada existiria. Mas a diferença de vocês é que faz com que os dois existam.
A Lua, se tivesse mãos, teria passado uma por cima da própria cabeça enquanto dizia “Pfiu!”. Ou teria feito um sinal de paz-e-amor, indicando que D’us estava fumado.
— Mas eu estou presa no Tempo. Pra mim, o Sol sempre vai emitir luz, e eu sempre vou só refletir.
D’us abriu outro buraco no Tempo, deixou a Lua observar um mendigo pedindo esmola. Não era o primeiro mendigo, nem o último. Era só mais um mendigo.
A Lua se identificou com o mendigo. E identificou o Sol como um homem que se aproximava. O Homem-Sol colocou a mão no bolso e tirou algumas moedas. De uma bolsa, tirou um pedaço de pão. O Homem-Sol deu as moedas e o pão ao mendigo.
E D’us disse:
— Tu acha o homem rico mais importante ou mais bonito do que o pobre?
— Claro!
— E se ele não estivesse doando para o homem pobre?
— Isso é tão egoísta. Fazer uma pessoa pobre apenas que outra pareça mais brilhante.
— Tu está certa. E eu farei um povo inteiro assim.
— O quê? Não faz sentido!
— Vocês estarão ligados para sempre. Povo e Lua. Eu pedirei que um de meus sacrifícios seja ofertado a ti, o primeiro sacrifício de cada mês.
— Eles vão ofertar algo pra mim?
— Sim.
— E pro Sol?
— Não.
— Tá. Aceito.
No Talmud, se registra que D’us viu que a Lua não estava satisfeita com seu tamanho. E D’us disse: “Ofereçam em Meu Nome, para Minha expiação, por eu ter diminuído a Lua.”
E é assim que o primeiro sacrifício do mês é feito para expiar a diminuição da Lua.
Perder uma discussão quer dizer que os alunos aprenderam a pensar por si. É um encolhimento do professor que se aproxima dos alunos para que os alunos cresçam. Se o professor não se diminuir, se o professor tentar dar ao aluno todo o conhecimento em toda sua complexidade de uma vez, cria um abismo entre ele e o aluno.
Por outro lado, quando o professor se diminui e entrega ao aluno um conhecimento também diminuído, para que caiba no mundo do aluno, põe-se em posição de ser descoberto como charlatão pelo próprio aluno, que vai descobrir que o professor lhe mentiu. Ou que lhe ensinou “errado”. Mas é o caminho esperado.