Se antes faltava uma forma acessível de conhecer os mitos nórdicos, agora não mais. Neil Gaiman, você conseguiu de novo – e dessa vez, nos presenteou com uma obra que apresenta uma mitologia com muito respeito ao material antigo.
Imagem destacada: Marc Simonetti
O escritor britânico Neil Gaiman nunca escondeu seu amor pela mitologia nórdica. Sua influência é bem evidente em obras como Sandman e Deuses Americanos, sendo frequentemente referenciada. Em um projeto que ocupou mais de 8 anos, Gaiman se propôs a escrever com suas próprias palavras seus contos favoritos desta mitologia de forma que ficassem sutilmente amarrados, formando um arco de histórias. Embora sua principal referência tenha sido a Edda em Prosa (escrita no século XIII na Islândia, já após a conversão), a Edda Poética (mais antiga) também se faz presente e em certos contos versões presentes em ambas se mesclam.
Aqueles acostumados com os romances de Gaiman, ricamente descritivos, podem estranhar o estilo narrativo mais direto e simples escolhido para esta obra. O autor quis emular uma narrativa oral, conforme seria recitada por um skald nos salões; e também possui a intenção do texto ser facilmente apreendido e recitado em voz alta. Porém, o texto não deve em nada à sutileza praticamente poética e domínio da linguagem características de suas outras obras, em diversos momentos usando símbolos e comparações que às vezes passam despercebidos mesmo no meio pagão. Destaco especialmente o mito da criação, que aqueles que já leram o artigo que o analisa magisticamente poderão enxergar de um outro ângulo.
O livro abre com uma introdução do autor ao tema, e logo em seguida faz uma breve descrição de Óðinn, Þórr e Loki. Neste momento, somos apresentados a detalhes importantes sobre estas entidades mas que não são descritas narrativamente no resto da obra, como o sacrifício de Óðinn para obter a magia ou os acordos entre ele e Loki que permitiram que o gigante permanecesse em Ásgarðr. Apesar de Gaiman ter feito um trabalho para criar uma cronologia entre os contos, ele mesmo avisa na introdução que contradições entre eles podem ser encontradas; e mesmo com seus acréscimos pessoais, estão fiéis às versões das Eddas (com um especialmente belo fechando a narrativa sobre o Ragnarök).
Apenas pontuo que Gaiman não fugiu de algumas convenções da literatura clássica que por vezes são projetados em narrativas de outros povos, mas estariam na verdade distante de seus imaginários. Em tragédias gregas, quanto mais um herói foge de seu Destino melhor ele o cumpre, sempre perseguido por forças que fazem com atos para tentar evitar uma profecia sejam justamente o que a desencadeiam; e essa foi a forma que o livro decidiu abordar o Ragnarök, destacando muito o papel de Loki e seu filho Fenrir na destruição do mundo. Em outro texto, abordei como se daria o cumprimento da profecia sob a visão pagã nórdica – e os atos individuais de algumas entidades teriam pouco ou nenhum impacto sobre a Urðr.
Li através da edição em língua inglesa, que possui um acabamento gráfico um pouco melhor e um formato um pouco maior que a brasileira publicada pela Intrínseca. Porém, o volume nacional não deixa a desejar e possui capa dura. Pela editora estar fazendo um excelente trabalho trazendo a obra do autor para o Brasil, creio que a tradução esteja na mesma qualidade de outras publicações da linha.
Finalmente, é importante lembrar que na religiosidade pagã nórdica as Eddas (e obviamente os mitos) não são vistos como “textos sagrados”, e que os registros islandeses já não são suas “versões originais”. Havia uma falta de uma versão acessível e confiável para introduzir pessoas à mitologia, uma vez que traduções acadêmicas em português abrangem somente alguns poemas e, dado o tempo que foram escritos, não possuem linguagem fácil; mas agora, novatos podem contar com Neil Gaiman como um guia para este universo. Aos que já a conhecem, agora poderão a revisitar de uma forma que ao mesmo que soa muito familiar também traz consigo um ar de novidade.