Entre o hebraico e o caos: Ferdinand de Saussure

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Tudo daqui pra frente é um truque elaborado para te enganar.

Parece normal, quando alguém quer estudar magia, que esqueça que nosso entendimento se sustenta em séculos de pensadores iniciados e leigos conversando entre si. Até mesmo de séculos em que não havia diferença entre o pensamento do leigo e o do iniciado. Nos estudos de cabala judaica, é importante compreender o pensamento de onde a ideia de magia das palavras se inicia: a palavra imanente ao objeto. A cabala sustenta que a palavra hebraica é tão pura e original que está diretamente ligada à essência imanente das coisas.

(Imanente é o contrário de transcendente.)

Em teoria, a magia através das palavras hebraicas funciona, porque a palavra hebraica permite tocar o interior essencial das coisas. O “nome” original e puro de um objeto permite, então, conhecer o objeto e dominá-lo. O mesmo funcionaria para coisas, pessoas e entidades. Dizer o nome “verdadeiro” hebraico de uma árvore a faria crescer mais rápido. Dizer o nome “verdadeiro” hebraico de uma pessoa permitiria que mudássemos como ela pensa, como ela age. Dizer o nome “verdadeiro” de um demônio permitiria nos defender dele ou ordená-lo a matar outra pessoa. E daqui entende-se a importância da mística sobre o “verdadeiro” nome de D’us, em hebraico, o inefável IHVH.

A mesma magia funcionava no sânscrito e funcionaria em latim. Tudo se manteve mais ou menos igual desde que a Torah foi outorgada ao povo judaico (ou desde que o homem inventou a fala, se você for um infiel) até cerca de 1890, quando surgiu Ferdinand de Saussure, sua “semiologia” e uma nova magia. Saussure eliminou, por exemplo, a ideia de que uma palavra tem apenas um significado. Antes, entendia-se que a palavra tinha um significado “correto” em uma determinada língua. Os dicionário ainda são formados assim. Ditam um significado padrão ignorando a situação geográfica dos falantes da língua.

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Pra que serve esse sigilo mesmo? Eu esqueci.

Mais importante para nosso estudo, duas das chamadas “dicotomias saussurianas” são: sintagma x paradigma e significante x significado. Sintagma fala da linearidade da comunicação. Não podemos falar duas palavras ao mesmo tempo. Um símbolo, uma palavra, um desenho só passa a ter valor na fala quando em comparação com os outros elementos da frase, do desenho, do sigilo. Ou seja, o significado de algo depende do contexto. Imagine em uma tirada de Tarot, a lâmina da Morte ao lado de um Dez de Espadas ou de um Ás de Copas. Paradigma fala das alternativas do vocabulário. O significado depende também de quais as palavras eu tinha para escolher e, portanto, quais eu escolhi não dizer. Quando alguém diz “Amor”, é diferente dizer em português ou ter “Ágape” e “Eros” como alternativas. Na prática, quando um tradutor coloca “compaixão” em Chesed, o que sobra para a habilidade de “sentir junto” em Tiferet?

A cereja do bolo semiológico (péssima figura) é a dicotomia significante x significado.

Significante é o desenho no papel, o som dito ou gravado, a forma. Significado é aquilo que a palavra quer dizer, que o desenho quer dizer. Um signo seria formado por significante e significado, como os dois lados da moeda. A grande sacada de Saussure é que essa ligação é arbitrária. Quer dizer, que nós decidimos o que as palavras significam. E daí?

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Cuidado: nem todos os encaixes possíveis são convenientes.

Se no hebraico, as palavras estavam ligadas à essência das coisas, deste lado de todo processo do século XX, estamos livres para dar qualquer nome a qualquer coisa. Não é necessário mais descobrir o nome puro e original de um objeto, de uma pessoa, de uma entidade. Qualquer rabisco pode ser ligado à entidade que traz dinheiro, qualquer som pode evocar a cura. Os nomes são apenas significantes que nós mesmo conectamos aos significados mais secretos.

Em Jung, o que ele chamou de arquétipo, longe de ser uma verdade universal, era um significado que podia criar qualquer imagem arquetípica. A onça do sonho não poderia mais ser decifrada através de um catálogo de símbolos ou dicionário de sonhos. Era preciso descobrir o que “a onça” significava para o sonhador. Embora guardemos resquícios da crença na linguagem mágica, o Tarot não possui significado imanente para cada imagem. Um mesmo arquétipo pode gerar a imagem de um eremita, a de uma festa ou a de uma xícara.

Não há interpretação correta. Nada é verdade, tudo é permitido.

Shbaa.

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