Às vezes essa pergunta vem junto com a palavra karma, às vezes as pessoas querem “justiça”. É nas nossas relações diárias que trabalhamos os mitos do débito e da culpa. E é nessas mesmas relações que destruímos quaisquer noções de reação, retribuição, equilíbrio. Mas o que é, afinal, essa tal de gratidão?
Zebulon e Issacar
Diz a lenda que, quando Issacar morreu, os anjos vieram ao seu tribunal e contaram os seus dias de estudo da Torah para decidir sobre seu destino no próximo mundo. Issacar havia estudado todos os dias de que se lembrava, desde pequeno, durante todas as horas em que não estava dormindo ou comendo. Foi com surpresa que ouviu dos anjos o decreto:
— Dois dias de estudo.
— Como “dois dias”? Estudei todos os dias da minha vida e só contabilizam dois dias?
— Issacar, como te sustentaste para viver estudando a Torah?
— Meu irmão, Zebulon, é um mercador próspero. Ele garantiu que eu tivesse o necessário para estudar sem preocupações.
— Então, decretamos que todos os teus dias de estudos irão para Zebulon, menos dois dias.
Issacar sabia que não havia o que discutir e agradeceu. Em seguida, ouviu uma voz conhecida que dizia:
— Essa é a voz de meu irmão Issacar?
— Que bom que estás aqui, Zebulon. Acabaram de me informar que serás recompensado por todos os dias em que me deste de comer para que eu pudesse estudar a Torah em paz.
Zebulon pareceu muito contrariado.
— Não, não, não. Isso não está certo. Por acaso dei-te minha comida e fiquei com a mesa vazia? Não fui eu que te alimentei para que estudaste, foste tu que me trouxeste todo tipo de graça com os teus estudos. Quem se beneficiou de nosso arranjo fui eu. Que os anjos te devolvam todos os teus dias!
Os anjos, ouvindo os irmãos, decidiram:
— Issacar e Zebulon, contraíste-vos cada qual em favor do outro. Por este vosso amor, duplicaremos o tempo de Zebulon e expandiremos também o tempo de Issacar.
Estereótipos
Issacar e Zebulon são nomes de tribos de Israel. É difícil imaginar que uma tribo inteira se dedicasse inteiramente ao estudo ou ao comércio. Mas, com o tempo, o estereótipo de cada tribo foi reforçado pelos seus descendentes.
O mais provável é que a tribo de Issacar, conhecida pela dedicação ao estudo da Torah, se dedicasse primariamente a culturas de subsistência, aproveitando-se de comércio direto com Zebulon para adquirir produtos que não pudessem ser produzidos pela própria tribo de Issacar e para distribuir o eventual excedente de produção. O mito, no entanto, foi repetido diversas vezes na história do judaísmo.
Maimônides
Dizem que Maimônides era de família de mercadores, mas foi seu irmão que manteve os negócios da família enquanto Maimônides estudava. Não há nada de errado nisso, e é até mesmo uma construção comum. Mas o mais interessante é notar que não há no registro histórico judaico pessoas notáveis por serem ricas ou nobres — no sentido europeu da palavra. Não se diz: Fulano foi um judeu muito rico; nem Beltrano foi um rei judeu. Os judeus registrado na História do judaísmo aparecem como “Rabino Sicrano foi um grande estudioso da Torah”.
A esposa do Rabi Akiva
O rabino Akiva foi um dos maiores estudiosos da Torah, viveu no primeiro século da Era Comum, seus alunos também se tornaram conhecidos tanto pelo estudo das leis quanto pelo conhecimento de cabala. Akiva também não conquistou seu estudo sozinho.
A lenda de Akiva conta que, antes de ser rabino, ele trabalhava como pastor para um dos homens mais ricos de Jerusalém. Aos 40 anos, Akiva ben Yoseph era analfabeto, mas era reconhecido pela sua extrema humildade. Foi já nessa idade que Rachel, a filha do chefe, encontrou Akiva e se apaixonou por ele. Ou, como alguns dizem, pela sua humildade. Akiva compreendia que estava aquém de sua esposa. A esposa, no entando, enxergava Akiva com outros olhos e o mandou estudar.
Rachel enviou o marido Akiva, analfabeto, à Academia de Yavne, sede do Sinédrio. E mandou que estudasse. Lá, Akiva pode estudar com os rabinos Eliezer e Yehoshua.
Dizem que se passaram 12 anos quando Akiva voltou às terras de sua esposa, já cercado por 12 mil alunos. Chegando em casa, ouviu uma vizinha perguntando a sua esposa:
— Quanto tempo ainda vais viver como viúva?
— Aguentaria mais 12 anos de solidão se meu marido puder se dedicar completamente ao estudo da Torah.
Akiva deu meia-volta e se dirigiu novamente à yeshiva por mais 12 anos. Então, 24 anos depois de casado, retornou à casa da esposa, agora já com 24 mil seguidores. Rachel o reconheceu, mas agora sozinha e pobre por não ter com quem dividir o comando das terras, não foi reconhecida pelos alunos de Akiva quando esta se jogou aos pés do marido. Os alunos tentaram afastá-la.
— Tudo o que tenho e que vocês desfrutam — disse Akiva se referindo à sabedoria do estudo — somente pude conquistar graças a ela.
Distinções culturais
Perguntei uma vez sobre o funcionamento desse sistema de dívida e gratidão a um rabino amigo que me respondeu com uma historinha supostamente japonesa:
Uma japonês pede dinheiro emprestado a um desconhecido. Mas não devolve o dinheiro. Não é que fosse impossível devolver o dinheiro. Ele simplesmente não devolve. Não devolve, porque devolver o dinheiro é tratar essa pessoa como uma pessoa qualquer.
Seria como não aceitar sua generosidade da forma como foi dada. Seria como suspeitar de que sua bondade esconde algum defeito. Aceitar o favor de um estranho e abster-se de devolver o favor é o mesmo que fazer algo muito importante por essa pessoa, porque significa que você está se comportando como se essa pessoa fosse importante para você.
Mas, se você retribui o favor, isso quer dizer que acaba tudo ali… Carregar no coração a gratidão pelo favor recebido, eis aí um pagamento que dinheiro jamais será capaz de igualar.
Ok. Ok.
E o que eu tenho a ver com tudo isso?, estás perguntando. Bem, aceita que muitas relações não têm volta. E não precisam ter volta. Não precisam ser igualitárias. Não são nem nunca serão simétricas.
Lembra de que, às vezes, não é possível retribuir o bem que nos é feito. Mesmo que se devolva o dinheiro, que se pague um jantar, que se escreva uma carta; mesmo que retribua um favor, o “bem” não volta, é sempre mais “bem”. Nem o “mal” volta, é sempre mais “mal”. E, de um jeito ou de outro, não há “justiça”.