A literatura acerca da magia cabalística sobrevive renegada à fantasia. Se perguntarmos aos grandes estudantes de cabala de hoje, responderão que cabala é uma forma poética de tratar questões internas, psicológicas, sociais. São os grandes rabinos que ainda discordam.
A nossa tradição de cabala ibero-americana sobrevive repetindo a máxima: “no creo en brujas, pero que las hay, las hay”.
Não acreditamos em bruxas, mas que elas existem, existem.
Muitos acreditam que essas histórias escondem rituais reais. A maioria acha que é só ficção. Talvez por medo, talvez pela pura falta de evidências fora do próprio corpus narrativo. É mais seguro assim. Isso não nos impede de tentar. Gostamos de examinar essas histórias em busca de conhecimentos ocultos. Ocultos em mais de um significado.

Das histórias judaicas, a que melhor se adaptou e multiplicou-se nas demais culturas foi o mito do golem. Golems representam nossa substância (golmi, em hebraico) sem nossa alma, sem um propósito próprio. Golems são feitos da mesma matéria que nós, terra intocada, argila vermelha. Humus. São quasi-humanos que recebem o Sopro (indireto) a partir de outro humano.
A releitura do golem pode ser encontrado no monstro de Franskenstein, na Skynet de O Exterminador do Futuro, no . Até mesmo na narrativa de Pinóquio, que sem a essência de humano, sem a “verdade” (emet), não pode ser uma criança humana real.
O robô idealizado na literatura de ficção científica é, no original, uma versão do golem. Robô, diz-se, vem da palavra tcheca para “trabalho forçado”, robota. Foi usada pela primeira vez por Karel Čapek em uma história traduzida para o Português como “A Fábrica de Robôs”. Assim como o golem tradicional, o robô de Čapek é um autômato que se volta contra o criador.
Na tradição judaica, o golem é marcado como não-humano pela incapacidade de falar. Não tem voz própria. Não concretiza ações sobre o mundo. Para ser específico, não possui a conexão da letra Peh. As ordens ao golem devem ser escritas em papel e colocadas em sua boca (peh). Mas aqui já divirjo.
A palavra escrita tem, então, importância para a criação do golem. A palavra escrita pelo ser humano, na frieza da tinta e do papel. Como já escrevemos no Cabala Judaica #5:
Mudar a palavra muda a coisa. Existem centenas (talvez milhares) de alegorias sobre como d’us mudou o nome das pessoas, mas tem outra menos bíblica e mais “mágica”: a lenda do Golem golmi, palavra hebraica para “matéria, substância”. Na história do judaísmo, apenas o rabino Vilna Gaon admitiu de forma pública que havia tentado criar um Golem. Todas as outras lendas foram recontadas por terceiros, geralmente alunos dos mestres, anos após o ocorrido.
E a receita para se criar um pinóquio de barro, como também já foi, é:
argila a palavra “argila” não tem correspondente?
emet palavra escrita na testa do Golem
o “monstro” é incapaz de falar
palavras escritas colocadas em um papel na boca
fazer tarefas repetidas
aberração, destruição
‘emet -> met alef apagado da testa do GolemEntão, assim como qualquer outra ideia ou “forma-pensamento”, podemos dar vida a um Golem imprimindo-lhe energia através da palavra. O Golem não é apenas metáfora da materialização dos desejos. O judaísmo é uma religião muito materialista. Não conceberia a ideia de gênios mágicos, como o de Aladim, capazes de criar algo do nada. O judaísmo acredita em por a mão na massa. Literalmente. Quando a “palavra” do judeu encontra uma “substância” que possa dar-lhe forma, a palavra ganha vida própria. Por isso, o judeu não deve xingar, falar mal ou desejar o mal de outras pessoas.
O Golem de Praga é talvez a história mais conhecida sobre o golem judaico. Dizem que é uma história real. A cidade de Praga guarda até hoje mais de 30 estátuas barrocas associadas à narrativa, incluindo imagens do Maharal, nome pelo qual o Grão-Rabino Loew se tornou conhecido, e da suposta criatura.
Historicamente, Praga não foi um bom lar para os judeus. Em 1357, o rei determinou que os judeus deveriam ficar restritos a um único bairro. Em 1389, três mil judeus — homens, mulheres e crianças — foram assassinadas durante as festividades de Pessach. Apesar do ódio do povo, os judeus nunca fugiram de Praga, confiando que poderiam um dia viver em segurança. Hoje, o Cemitério de Praga serve como prova dessa perseverança. São algo entre sete e doze camadas alternadas de túmulos e terra, sobrepondo gerações de judeus que encontraram seu descanso final naquela cidade.

Quando o Rav Judah Loew foi ordenado Grão-Rabino de Praga na segunda metade do século XVI, o povo judeu que habitava a cidade vivia uma era de constantes perigos. O ódio, ao que se sabe, era incitado principalmente pelo bispo Tadeusz, um judeu convertido ao catolicismo. O bispo dizia a todos ter testemunhado como judeus matavam crianças cristãs a sangue frio, adoravam falsos deuses, conspiravam contra a moral e os bons costumes católicos, roubavam nos negócios. Nada novo sob o Sol. Ao Maharal, sobrou apenas as preces a D’us pela proteção de seu povo.
Se muito se falava mal sobre os judeus, os judeus falavam muito bem do Rav Judah Loew. Contava-se que sempre buscava apaziguar os ânimos, ensinando sobre o verdadeiro judaísmo a quem quisesse aprender. Era mestre na Torah, no Talmud e na Cabala. Diziam até que tinha poderes mentais e espirituais inigualáveis. Quando Judah Loew rezou a D’us pedindo proteção, sonhou com letras do alfabeto hebraico e uma figura de argila ainda disforme. Interpretou como uma mensagem divina.
O Grão-Rabino de Praga imediatamente mandou chamar seu genro e um de seus alunos mais aplicados pertencente à tribo dos Levi. Em 20 de Adar, contou aos dois sobre seu sonho e puseram-se a pesquisar sobre o Golem. Muito pouco há escrito explicitamente, mas o Talmud registra que ao menos o sábio Rava foi bem sucedido em criar um para si.
Os três homens se purificaram por três dias, incluindo um banho ritual na mikve, jejum e orações de devoção extrema. No terceiro dia, foram ao rio Vlatva com um pacote de roupas extras. Trouxeram para casa um novo shamash, auxiliar da sinagoga a quem foi apelidade Yossi, o mudo.
Yossi, ao que se sabe, não era inteligente. Não falava. Obedecia apenas as ordens do Grão-Rabino. Foi responsável por muitos anos pela proteção da sinagoga e dos judeus que a frequentavam. Descobriu uma tentativa de envenenar as matzot que seriam distribuídas na sinagoga. Resgatou uma menina judia que seria convertida à força.
As investidas do bispo Tadeusz com violência física e difamações ao povo judeu durou até a morte de Tadeusz em 1590. Nesse ano, em Lag BaOmer, o shamash da Sinagoga se retirou aos seus aposentos, no sótão àcima da nave central, após as cerimônias. E nunca mais foi visto.
De lá para cá, muitos contas histórias sobre golems que foram criados por humanos para proteger o povo, especialmente o povo judeu. Uns creem que o Golem voltou ao pó de onde veio, como nós humanos fazemos. Mas muitos acreditam que Yossi ainda está lá, no sótão da Alt Neue, a “Antiga Nova” Sinagoga de Praga, debaixo de pilhas e pilhas de livros envelhecidos. Há quem chegue a acordar o diretor do Museu Judaico de Praga à meia-noite para que ele permita uma visitação noturna à sinagoga para turistas caçadores de tesouros.
O diretor do Museu Judaico de Praga, num exemplo estranho de falta de tato com relações públicas, insiste que o Golem Yossi nunca existiu. E pede que parem de lhe importunar.
Para quem acredita que é só mais uma ficção fantástica, muitas versões estão à disposição hoje: “O Golem e o Rabi Loew”, de Franz Klutschak; “Galerie der Sippurum”, de Wolf Pascheles; “O Golem”, Isaac Bashevis Singer; e “O Golem”, de Elie Wiesel; pelo menos duas versões para cinema, de e com Paul Wegener…

Para quem acredita que o Golem foi (ou é) real, sabemos que, apesar da essência simbólica, a cabala não é verdadeira se for apenas simbolismo. A verdade codificada na cabala é espiritual, metafórica, simbólica, mas só é verdade plena se for também uma verdade sobre o mundo material.
Talvez não saibamos o que é a substância a que se refere o golem, pero que las hay, las hay.