O Brasil recebeu povos de diversos pontos do mundo como parte de sua comunidade. Como não poderia deixar de ser, a alquimia das relações humanas tratou de misturar nessa nossa plaquinha de Petri crenças para as mais singulares lendas germinarem. O sincretismo é culturalmente evidente nos mais distantes pontos do Brasil. Sendo espaço recente de migrações, comparado com os lugares de onde estes migrantes vieram, as diferentes referências religiosas e espirituais ainda são opacas entre si. A leitura de qualquer lenda de formação dos nossos Estados e Regiões mostra a riqueza das influências simbólicas sobrepostas em sua criação. É disso que trata este texto.
Era uma vez um negrinho
O negro ocupa grande parte da História e das lendas do Rio Grande do Sul, mesmo que, durante muito tempo, o Estado tenha se identificado como de brancos europeus ou mesmo de índios cisplatinos. Às vezes oculto, às vezes simplesmente esquecido, a imagem sobrevive em narrativas sobre a falsa libertação quatro anos antes da Lei Áurea, sobre a participação forçada na guerra do Paraguai e na passagem da promessa nunca cumprida de alforria após a Revolução Farroupilha. Mas uma história sobrevive, para o bem ou para o mal, como identidade do povo gaúcho: a do Negrinho do Pastoreio.
O Negrinho do Pastoreio é uma entidade do imaginário do Rio Grande do Sul. Quando o gaúcho acende uma vela para o Negrinho, o menino sai em busca de objetos perdidos e os coloca onde possam ser encontrados. Mas a lenda que explica essa entidade é muito mais complexa do que isso. E tem diversas camadas, assim como a História do Rio Grande do Sul.
Era uma vez um menino negro de cujos pais não se fala. Pela idade da história, era escravo. Mas disso também não se fala. Era um menino e era arteiro. Talvez representasse a rebeldia, já que escravo. Talvez fosse só um menino. Feliz. De qualquer forma, a lenda tenta esquecer que o menino não era livre. Por isso, nos dá essa falsa sensação de liberdade: ele era um menino e era arteiro.
Já aqui, há quem date a origem da lenda de antes da chegada de negros ao Rio Grande do Sul. É importante ver que o menino “arteiro” é comum tanto nas lendas brasileiras quanto nas africanas. As entidades-crianças trazem a alegria infantil e o caos, a bagunça. E o brasileiríssimo Saci, outro negro infantilizado, também é culpado de tudo de estranho que acontece nas fazendas e florestas. O próprio Saci já era amálgama de lendas indígenas e europeias, com seu único pé trazendo outro pé de vento e seu gorro vermelho como o fogo.
Bem, o menino negro, o negrinho, pastoreava em uma fazenda durante o dia, diziam, e à noite soltava os animais que de dia viviam presos. Numa dessas noites, quando pulava o cercado para ir montar os cavalos do dono da fazenda, a porteira destrancou, e os cavalos fugiram. A barulheira foi tamanha que todos na fazendo se acordaram.
O estancieiro não ficou contente, claro. Descobrindo que o negrinho era o culpado, mandou chamar o menino e ordenou que buscasse os cavalos um a um, sozinho. O menino foi, naquela noite escura, acompanhado apenas pela luz que conseguia manter com uma vela. Retornou exausto pouco antes do amanhecer, trazendo todos os cavalos menos um.
Claro que isso não foi suficiente. O estancieiro ficou enfurecido. O cavalo que o menino não trouxe era obviamente o mais importante: um tordilho negro grande e forte.
Simbolicamente, o tordilho negro é um cavalo que nasce escuro e clareia com a idade.
“Ele deve estar bem longe agora” alguém disse. “Ele era muito rápido” outro emendou. “É um cavalo negro, meu senhor, como o menino o veria nessa escuridão?” ainda tentaram ajudar.
Não foi suficiente. O estancieiro mandou buscar o chicote e desceu o coro sobre as costas do menino até sangrarem. E, não satisfeito, jogou o menino de costas sobre um formigueiro em algum canto da fazenda. Enquanto as formigas começavam a subir pelo corpo do menino, o estancieiro mandou que todos fossem dormissem e deixassem o menino ali para morrer.
Veja bem, se eu terminar a lenda aqui e disse que o menino foi punido pela sua malcriação, a história se sustentaria assim mesmo. O estancieiro pune o menino escravo. É uma história sobre como se deve obedecer o homem branco rico e senhor de terras. Quem desobedecer vai morrer. Não só isso. O negrinho, por ser desobediente, agora tinha como expiação a obrigação encontrar os objetos perdidos de qualquer um que lhe comandasse a tal. Acender a vela para o negrinho é o mesmo que prender um demônio na garrafa. O negrinho continua escravo… Obviamente, esta história só é boa para o estancieiro. Nenhum negro gostaria de ouvir a história como está.
Mas esta história não se estanca por aqui.
Quando no Negrinho estava agonizando, chorando copiosamente de dor, de frio e de culpa, surge uma luz brilhante perto dele. No meio da neblina, ele consegue distinguir a imagem de uma mulher. É Nossa Senhora.
Sim. A Nossa Senhora do cristianismo.
Nossa Senhora revela-se para o menino, que estende sua mão instintivamente pedindo bênção. Nossa Senhora o salva e lhe absolve. Ela conta como estava cuidando dele. Viu que o menino buscou reparar o dano que fez com a melhor das intenções e com o coração mais puro. E como prêmio, abençoa-o com o dom de ajudar todas as pessoas que perderem algo importante. Quando alguém acender uma vela e chamar pelo Negrinho do Pastoreio, o menino, com a bênção de Nossa Senhora, vai buscar o que foi perdido e deixar onde possa ser encontrado.
Viram o que aconteceu? Hein? Hein? O “cristianismo” veio absolver o negro.
Pois então. O menino negro rebelde, arteiro ou transgressor é agora símbolo do cristão bonzinho e arrependido. Embranquecido, mas nunca tão branco, feito um tordilho negro. Um negrinho de alma branca, que ajuda todo mundo. Submisso aos ideais cristãos. E isso é vendido como uma coisa boa.
Quem acredita diz que, na verdade, é preciso acender um coto de vela, nunca uma vela inteira, e que o coto de vela precisa ser colocado ao lado de uma broto de planta ou árvore com flores recém desabrochadas. Se a vela for acesa na cidade, sugere-se que seja comprada uma planta nova para a casa.
De qualquer jeito, ainda hoje há relatos de um tordilho branco, visto em noites escuras nas coxilhas do Rio Grande do Sul, seguido de perto por uma luz fraca e bruxuleante.
Shbaa.