Sempre surgem obras na cultura pop com referências (intencionais ou não) ao ocultismo, a magia e espiritualidade. Para começar esta coluna com recomendações para quem procura boas formas de retratar conceitos ou apenas se divertir, conheça o mangá/animê Noragami (algo como “Deus Bastardo”, em tradução livre).
Iniciado como um mangá da dupla Adachitoka em 2010, o protagonista Yato se apresenta como um deus mas não possui devotos, altares ou templos; porém, está cheio de delírios de grandeza (quando será uma divindade amplamente cultuada) e precisa lidar com seu passado obscuro, onde teria sido um deus de guerras e calamidades que atraiu a fúria de Bishamonten (outra divindade guerreira). Ele começa a espalhar pichações com um número de celular pela cidade, que seria visto por “aqueles que necessitam” – as quais ele atenderá se dizendo o “Deus Delivery” que realizará qualquer desejo em troca de 5 yens, a moeda de mais baixo valor na circulação japonesa. Após causar um acidente que torna a estudante Hiyori Iki um ser que transita entre os mundos físico e espiritual, Yato recebe o desejo de fazer com que ela volte ao normal. Foi adaptado como anime em 2014, recebendo uma segunda temporada em 2015 com 13 episódios cada.
O estado intermediário de Hiyori faz com que ela seja uma presa preferida para os obsessores, aqui chamados de “Ayakashi” (um termo do folclore japonês para um coletivo de espíritos nocivos). Já chama atenção pela forma que são retratados, colocados como os maiores adversários dos deuses em sua vigília da humanidade. O modo que crescem quando se alimentam de uma pessoa e como nos livramos deles formam boas referências – em alguns momentos, ao receber o desejo de resolver uma situação causada por um Ayakashi, Yato prefere manipular os acontecimentos para que a própria pessoa consiga se afastar de sua influência. Além disso, também é citado que a alma de um morto pode acabar se transformando em um Ayakashi se influenciada de forma negativa.
A abordagem usada para as divindades deve ser destacada. Com explicações para o seu surgimento e influência ligadas ao acúmulo de desejos e devoções das pessoas, lembram muito as estruturas de egrégoras que estudamos no ocultismo. O caso de Yato, melhor explicado posteriormente no mangá, é muito parecido com servidores que acabam se desenvolvendo ao ponto de virarem entidades independentes. Os deuses, sendo mostrados como conceitos e desejos encarnados, também são usados para discussões de moralidade de atos – uma vez que as autoras colocam que por sua natureza, as divindades teriam pouca. Temos também o caso de Kofuku, uma entidade de pobreza e infortúnio que tenta se passar por um aspecto de Ebisu (o deus da riqueza) – e relatos de entidades que se passam por outras infelizmente são frequentes.
Embora o animê seja uma boa adaptação, é um tanto corrido em relação ao mangá e a primeira temporada possui um arco filler (inexistente no mangá) entre os episódios 10 a 13. Certos capítulos, em geral mais focados nas relações entre os personagens, foram adaptados como especiais e OAD’s. O mangá é publicado em capítulos mensais através da revista Monthly Shōnen Magazine, possuindo 16 volumes compilados até o momento; possui um traço suave e um ritmo mais lento que o normal para o gênero. É muito interessante observar como as autoras desenvolveram elementos tão próximos de conceitos ocultistas, e muito divertido reparar em como as relações entre os deuses podem lembrar conflitos entre egrégoras; com certeza, uma obra que vale a pena sem conferida.
– Ravn