Pensamento Rebelde : Magia Cerimonial

Eu comia bosta. Literalmente. É parte dos rituais que criei.

Ou: Quando um exercício de humildade aos nobres se torna arrogância dos plebeus.

Iniciando uma nova maneira de quebrar paradigmas em nosso blog, vamos falar um pouco sobre Magia Cerimonial.

Tira as roupas chiques e parece com qualquer MC jovem do baile funk, né não?

Nobreza e Magia

Para compreender esse exercício de pensamento, temos primeiro que sair das nossas bases de visão do mundo.

Hoje em dia é comum lavar um pano, arrumar um quarto e até chique ser artesão.

Mas se fôssemos um nobre europeu médio (até mesmo da baixa nobreza) do meio do século XIV, o que seriam esses atos?

Oras, teríamos sido criados com a ideia de que somos naturalmente superiores. Que nosso sangue e linhagem nos garantem maior favor e superioridade natural perante os outros humanos.

Lavar, preparar ferramentas, tingir couro, costurar panos ou qualquer outra forma de trabalho manual eram, pela sociedade da época, trabalho de servos e mulheres.

O típico nobre europeu homem, treinado para a batalha e a gastança normalmente sequer sabia ler e contar – até mesmo a administração do próprio dinheiro era “trabalho inferior”, destinado aos servos.

Nesse contexto, o que significa ser obrigado a tingir o couro para fazer os próprios sapatos?

Cortar madeira para a própria varinha?

Limpar e preparar o próprio santuário?

Lembremos que não haviam as amenidades modernas. Couro era tingido com urina, mesmo couro de leão. E se precisa de muita urina (baldes e baldes) para se tingir o couro de um leão.

O chão era lavado com cinza e água, o pó tirado dos móveis com panos crus que machucavam as mãos.  

Facas de trabalhar madeira e outros utensílios do tipo exigiam que o nobre, caso quisesse manter suas atividades mágicas de evocação fora dos olhos da igreja, fosse extremamente discreto a respeito disso.

E a pesar dos grandes duques dos impérios medievais terem suas regalias com respeito a denúncias de heresia, a média e pequena nobreza normalmente teria que cultivar boas relações com servos específicos, lhes dando agrados e lhes tratando muito melhor do que o nobre comum, para ter alguma chance de sucesso em conseguir as ferramentas para seu trabalho.

Para se fazer magia, sendo um nobre europeu, era necessário antes de mais nada se rebaixar do pedestal em que se foi colocado desde o nascimento.

Cultivar boas relações, ter gente de confiança entre a ralé.

Aprender como se fazer tarefas que jamais passariam pela mente de um nobre descobrir como se fazem, e se dedicar a todo tipo de fragilidade pessoal para se ter acesso ao que era necessário.

Ser um mago europeu, praticante de magia cerimonial, nascido na nobreza, era arriscar a própria pele e cabeça em troca de favores e amizade daqueles “inferiores” a si.

Um exercício de humildade e de desempoderamento, cuja consequência da falha é a fogueira.

Deus encarnado lavando o pé de uma mulher judia.

A Rendição pela Humilhação

Claro, sempre houveram aqueles que ignoraram as passagens nos livros.

Ao invés de se fazer os símbolos e sigilos a mão, porquê não contratar um desses artesãos famosos?

Todo mundo faz isso, não é mesmo?

E se for descoberto o esquema, se culpa o próprio artesão. Com base na ideia de que “um homem de sangue nobre jamais se rebaixaria a esse tipo de trabalho”, seria fácil jogar a culpa em um plebeu.

…ou seria mesmo?

Se esquecem as massas de hoje da intriga e relações de poder complexas das cortes medievais.

Teria essa possibilidade um rei empoderado, ou um duque de grande prestígio.

Mas basta que o mesmo artesão receba a proteção de outro nobre, de mais poder (ou da Igreja, por exemplo na figura de um bispo), e toda essa “facilidade” vai pelo ralo abaixo.

O caminho mais seguro a um nobre medieval, seria a “humilhação” de fazer todo o trabalho por si mesmo.

Mas isso não cabe àqueles encantados com a ideia de “magia dos nobres” perceber e compreender plenamente.

Pois um dos principais motivos pelos quais as pessoas buscam a Magia Cerimonial é justamente para se sentirem superiores. Nobres em um Tempo onde não há mais nobreza, praticando a “verdadeira arte sagrada”.

Lhes falta a noção de que a Obra, para um nobre medieval de fato, era humilhante de ser feita.

Seja ao mago metido a grande invocador de demônios, seja ao maçon orgulhoso de bater em uma pedra com o cinzel, lhes falta a noção de que essa era a tarefa dos servos.

Se submeter a ser servo, em prol de chegar ao divino.

Abrir mão da própria superioridade natural. Fazer o que é “natural que façam” apenas as mulheres e homens inferiores.

Essa era a principal tônica da Magia Cerimonial, e o primeiro e mais intenso obstáculo a ser ultrapassado.

Ao se conseguir cumprir com a Obra, o nobre obviamente estará transformado.

Perceberá a quão ridícula é a noção de sua superioridade de nascimento. Verá o quão difícil é o trabalho daqueles que sempre considerou “inferiores”, e ultrapassará o véu de sua própria posição social.

Ao entalhar uma varinha tosca, ao curtir um couro desconfortável e feio, ao suar e aturar os cheiros pungentes e ardor dos “produtos de limpeza” medievais, o nobre terá estraçalhada sua visão de mundo.

E estará pronto para se render ao divino em oração. Para ver as passagens da bíblia onde Jesus anda com os pobres e prostitutas, para compreender que os outros seres humanos não são tão menos capazes que ele – e assim se render a um poder maior.

Da mesma maneira, estará pronto para conversar com os grandes Nobres infernais – por sobre os quais não só terá igualdade de valor intrínseco (sendo um nobre ele mesmo), como ainda a clara noção de que esse valor é falso, e só a superioridade do divino é verdadeira.

O nobre humilhado, que não se quebra com a humilhação, mas ao contrário retorna ciente de que o poder é ilusório, e consegue acessar a superioridade de Deus. A partir dela, não se intimida com a aparente superioridade dos demônios.

Pois tem ali claro paralelo consigo mesmo. Com a própria arrogância e com a própria rendição subsequente.

O cavaleiro não é mais forte que o demônio. Ele é o fraco, pobre e “inferior”. Mas deus o coloca por cima e submete. Só dá para fazer isso quando o próprio cavaleiro não acredita que o mais forte deva ficar por cima.

Mas, e o plebeu?

E o servo, acostumado desde sempre aos ardores da vida?

E aquele que nunca teve a ideia de que era superior aos demais, e sabe muito bem de suas limitações?

A esse o trabalho só parece grande. E talvez pareça inclusive superior às suas próprias posições e status na vida.

Afinal, um mero alfaiate acostumado a costurar couro de vaca, de repente costurará a pele de um leão.

Ou, pior ainda. Um empresário hereditário moderno, que recebeu dos pais a firma de serviços de classe média (advocacia, escritório de arquitetura, consultório médico, etc), de repente se vê sob a ideia de que está fazendo o impensável… mas para o outro lado.

Está sendo maior que os mortais mundanos, os outros servos. Está esbanjando sua fortuna em peles de leão e espadas medievais. Para uma operação mágica sagrada onde chamará a sua presença um Nobre.

Não um demônio trabalhador que presta serviços a elite infernal.

Um verdadeiro Nobre, como nos contos de fadas.

Basta um pouco de pirotecnia e a maior parte dos homens brancos burgueses de classe média abaixam os joelhos e se submetem. Nem tem graça. E você? Aguenta não se submeter ao fascínio do meu poder?

Reversão de Efeitos

O que ocorre, então, é o completo oposto do esperado.

Ao invés de um exercício humilhante de humildade, praticar magia ou ser pedreiro mágico se tornam formas de alimentar o próprio ego.

Se tornam provas de superioridade, e se cria o justo parasita mental que a Magia Cerimonial surge para destruir: A ideia da naturalidade da servidão.

O nobre que praticou a Magia Cerimonial, em seu tempo, já era acometido da ideia de que é natural a um mortal ser superior e servido por outros.

Quando passou pelas preparações e rituais, idealmente, percebeu o quão sem sentido é essa ideia e se dedicou a servir somente a Deus.

Não importando o quão grandes e poderosos sejam os Lordes Infernais, sendo um Servo de Deus, o nobre europeu cerimonial irá lhes recusar e tratar adequadamente.

Já o Plebeu moderno…. infelizmente cai na outra linha do espectro.

Passa a se considerar superior, e a achar que é natural que Magos sejam superiores, tenham mais liberdades e benefícios que os “não-magos”.

Desenvolve Síndrome de Harry Potter, podemos dizer, ou começa a achar que magia é tudo maneira de trabalho com o próprio mundo interno – onde, obviamente, seu objetivo é Dominar e Conquistar tudo que há em si, para seu proveito próprio.

Mago Cerimonial moderno fazendo pouco caso de outras formas de magia sem saber o que o próprio sistema de magia era para quem o criou.

Conclusão

A Magia Cerimonial é perigosa aos pobres, plebeus e basicamente todo e qualquer membro da sociedade moderna.

Não por causa das forças invocadas, não por causa das tentações do Abismo.

Mas porquê ela se tornou, de um conjunto de atos repletos de humilhação e quebra de paradigmas mentais e sociais, em uma ocupação que traz orgulho, arrogância e prestígio àquele que a ela se dedica.

Chamar a Obra de “Grande Obra” e se insistir que as Cerimônias são Sagradas e de Grande Valor espiritual nunca foi uma forma de reafirmar a própria superioridade, pequeno jovem impressionável moderno.

Foi o raio de esperança para quem tinha que enfiar a mão na urina e fazer trabalhos degradantes a sua auto-imagem, de que era por uma boa causa.

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