A discussão sobre a definição de Vontade nos estudos contemporâneos da cabala parecem sempre girar em definições circulares, como um ralo que nunca esvazia a pia.
Tentei condensar a explicação em algumas metáforas simples. A questão é que “vontade” é uma palavra usada no dia-a-dia, mas não está aqui com esse significado cotidiano. Isso acontece com termos técnicos.
“Função”, por exemplo. Na matemática, quer dizer algo completamente diferente do uso cotidiano. “Qual a função desse martelo?” é um pergunta completamente diferente de “Qual a função entre a área de um quadrado e um de seus lados?” Em uma frase, a palavra função tem a ver com a finalidade ou o uso do objeto. Na outra, é uma descrição de relação entre dois valores ou mapeamento entre dois conjuntos.
Nós poderíamos dizer que os dois usos da palavra têm algum significado em comum? Talvez. Mas, na prática, são dois sentidos distintos. Poderiam ser simplesmente consideradas palavras homógrafas (palavras completamente diferentes, mas escritas iguais), não fosse a etimologia insistir que Leibniz usou uma palavra existente e não inventou uma palavra nova.
O mesmo ocorre com “Vontade”.
Como “função”, “Vontade” tem sua homógrafa “vontade” com um uso cotidiano. Talvez a escolha da palavra existente “vontade” para descrever um conceito tão específico quanto “Vontade” tenha sua razão. Quem escolheu essa palavra pode ter pensado que a analogia ajudaria a pessoa a compreender o significado. Ou a frase ficaria mais simples de ser repetida em público, em livros, em mantras do que Xablá.
Faze o que tu Xablás, há de ser tudo da Lei.
Ou a função de “vontade” seja outra coisa que não criar compreensão, mas a dúvida. Nesse sentido, me parece um exemplo elucidativo de “vontade” o uso da frase: “O corpo tem vontade de morrer”.
O corpo quer morrer? Não é bem assim. Na verdade, o corpo faz tudo para não morrer, não nos parece? O corpo se alimenta, sente fome e faz com que saibamos de que precisamos de comida. O corpo busca ar mesmo contra nossas ordens — e mesmo debaixo da água onde não há ar. O corpo faz o coração bater sem nenhum esforço consciente. O corpo trabalha para fechar feridas e combate doenças exatamente porque não quer a morte.
Mas a “xablá” do corpo também é morrer.
Na verdade, o corpo se dirige para a morte inexoravelmente. O corpo obedece as leis da natureza, se desgasta, se deteriora. É parte da vontade do corpo envelhecer, estragar, apodrecer e também servir de alimento para outros organismos. Se o corpo não fosse feito para morrer, isso não seria possível, seria? Um corpo morto ficaria lá, parado, congelado no tempo. E não é isso que acontece.
É nesse sentido que deveríamos compreender a Vontade. Não é só querer ficar famoso e ganhar dinheiro e ser feliz. Também é parte da condição humana ficar triste e chorar e sofrer pela perda. Tudo é parte da vontade, porque o corpo (e a alma) foram feitos para tudo isso. Seria possível não cumprir essa Vontade? Podemos negar esse “xablá”?
Veja bem, no judaísmo, pede-se que a pessoa seja útil para o mundo. E aqui há algo que sempre me causa problemas. Em teoria, temos livre arbítrio. Mas não podemos impedir o corpo de consumir energia ou de envelhecer ou de morrer… não conseguimos ir contra a vontade do corpo, contra nossa vontade… O que podemos decidir?
Só posso concluir, por enquanto, dois tipos de escolha. A mais simples seria: o livre arbítrio vem do conflito. Podemos ter uma vontade do corpo (qli) e uma vontade da alma (nefesh). Nós não somos alma dentro de um corpo. Somos alma E corpo. Se fôssemos uma alma presa dentro de um corpo, seria muito simples culpar o corpo pelos males e esperar que este se decomponha e nos liberte. Mas somos as duas coisas ao mesmo tempo, no mesmo lugar.
Uma das duas forças vai se sobrepor. Nossa pontinha de livre arbítrio é escolher a qual delas ajudar. Ou talvez tentar harmonizá-las, fazer uma potencializar a outra? No judaísmo, a escolha seria suprir o corpo para que se mantivesse vivo e alimentar a alma para que cumpra o máximo de suas possibilidades antes que o corpo se vá.
Agora, supondo que “há de ser tudo da lei”, e que não possamos impedir que as vontades sejam cumpridas, podemos, do ponto de vista do judaísmo, ampliar nosso campo de ação. Em vez de apagar uma vontade, deveríamos ampliá-la, fazer com que seja cumprida de maneira maior, mais forte, mais brilhante. Eu gosto de desenhar; posso ser um desenhista amador e desenhar como hobby; desenhar como profissão; ensinar desenho; desenhar como atividade social, ativismo em forma de arte. Posso escrever para ganhar dinheiro e sustentar minha família; escrever para inspirar outras pessoas; trazer à tona ideias novas, por em palavras claras conceitos difíceis; discutir, contestar, expandir ideias; deixar de herança um registro histórico. Posso administrar minha empresa e fazê-la ganhar dinheiro; fazer meus funcionários ganharem dinheiro; criar produtos ou serviços que garantam melhor qualidade de vida para as pessoas em meu entorno. Posso tratar bem minha esposa; tratar bem meus filhos, os filhos dos meus filhos; tratar bem os filhos dos outros; cuidar do vizinho e da moça da confeitaria.
(Como ampliar tua ação no mundo?)
Amplie sua vontade.
Shbaa.