As Chaves e suas Fechaduras

Um símbolo é, em primeiro lugar, um grafismo ou ícone; aquilo que ele irá significar depende de lugar, época, contexto. Tendo isto em mente, podemos deduzir que o sagrado para um sistema não é o símbolo em si, mas sim aquilo que estamos buscando através deles. Tornamo-os chaves, meios simples de abrir um imenso repertório de imagens e sensações – é por isso que dizemos que “o Segredo protege a si mesmo”, conhecer os símbolos é inútil sem consciência daquilo a que se deve remeter. Logo, um sistema com simbologia similar ou mesmo igual a outro pode estar lidando com energias completamente diferentes – e para ilustrar essa ideia, farei uma análise partindo da iconografia nórdica com que trabalho.

Imagem destacada: “Vejviser lønnøgle”, arte de Ræveðis

Como já foi discutido em vários posts anteriores, os “sistemas originais” de prática magística das tribos germânicas foram perdidos e o que temos hoje são construções contemporâneas; talvez por isso que muitas linhas sem ligação com o paganismo tenham decidido criar sistemas em torno da simbologia nórdica. É um caso onde podemos enxergar de forma bem clara como as chaves vão além do Mental e não possuem forma, pois embora diversos grupos pagãos e ordens iniciáticas aleguem todos explorarem “mistérios odínicos” quando conferidos na prática é notável uma diferença não apenas energética quanto nos resultados das operações. E para vermos este contraste, usaremos três sistemas – um diretamente pagão (ou as bases fundamentais que estão presentes em todos desta categoria) e dois diferentes de Mão Esquerda.

Começando a análise por sistemas atrelados a religiosidade pagã, existe uma tendência forte a priorizar influências telúricas – e embora tenhamos muitos sistemas divulgados que usam exclusivamente as runas, há uma forte inclinação para a magia natural (usando por exemplo galhos de árvores específicas como suportes onde serão talhados sigilos). O êxtase e o contato com diferentes planos possui um papel importante nesses casos, e as energias visadas por meios como as runas são vistas como atuantes diretamente sobre o Destino ou então forças da Natureza manifestadas em formas sutis. Com isso, temos como resultado uma energia mais “primal” e “bruta” que pode se manifestar de forma excessiva quando não manejada com cuidado – se você pedir para que a chama de uma vela seja apagada, pode ter como resultado fortes ventos e chuvas…

Já o sistema de Michael Kelly (Order of Apep) possui uma versão voltada para trabalhos com as runas e simbologia nórdica, centrado em torno do Ginnungagap. Trata-se de um uso de gnosis com o objetivo de alinhar a nossa percepção com o estado de Imanifestação e assim influenciar mudanças internas e externas. Aqui encontramos uma ênfase maior no choque de energias opostas e complementares e um auto-aperfeiçoamento que visa ampliar o contato da Consciência com o Vazio Incriado, apenas aplicando tais conceitos a mitos nórdicos (como o de Sigurðr e seu embate contra Fáfnir) e sua iconografia (como a triskele/valknut). A energia obtida dessa forma pode não conter a agressividade inerente daquelas acessadas por meio da prática pagã, porém sua natureza a torna altamente volúvel e também contém inúmeros traços Abissais.

Por fim, temos os trabalhos rúnicos de Thomas Karlsson, da Dragon-Rouge. Sua ordem possui um trabalho alquímico (embora abordado em suas facetas mais sinistras), e muito voltado para aspectos psicológicos – e não seria diferente com seu desenvolvimento de “mistérios odínicos” (termo muito usado pelo próprio). Ao invés de usar forças intrínsecas do Universo (representado pela Yggdrasill) e na Natureza ou de visar energias imanifestadas e ainda sem forma, foca-se na exploração de aspectos subconscientes (como a Sombra). Como resultado, temos um sistema que utiliza runas e se referencia nos mitos de Óðinn porém nos apresenta uma energia muito semelhante a das Qlipphoth exploradas no hermetismo – inclusive havendo correlações entre as runas e a Árvore da Vida, algo rejeitado dentro do paganismo e de pouca praticidade nos sistemas da Order of Apep.

Com isto, temos aparentemente as mesmas chaves simbólicas acessando pontos muito destoantes, ficando bem bem explícito o quanto a egrégora que está dando suporte ao sistema prático e sua simbologia eleita é até mais importante que a iconografia em si. É possível estender a discussão até a pontos de vista macrocósmicos, apontando que os aeons que as influenciam seriam também diferenciados. Embora muitas vezes lemos sobre sigilos, nomes e mesmo operações inteiras que teriam sido mantidos em segredo total e jamais disponíveis de forma alguma, deduzo que isto é muito mais uma lenda – os Segredos que operamos quando usamos magia não são verbais, e os símbolos são uma representação muito imperfeita que apenas determinamos como meios para conduzir nossas Mentes aos locais corretos.

Também podemos refletir se é por causa disso que muitas vezes é dito não conseguirmos quebrar um feitiço ou banir uma entidade sem ser dentro da egrégora em que ele surgiu. Ou ainda nos perguntarmos se as energias que um hermetista evoca ao vibrar Nomes de Deus tirados da Kabbalah seriam iguais as que um rabino obteria através do mesmo Nome. Quando se depararem com um novo sistema, não se deixem levar por uma iconografia que pareça familiar – procure suas bases além, e lembre-se do quanto detalhes que nos fogem a uma percepção imediata podem nos trazer resultados tão diferentes.

– Ravn

 

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