Dizem que a Árvore da Vida é o mapa da consciência do homem.
Através da Kabbalah Hermética, foram construídas correlações entre esse código que supostamente tenha sido criado pelos judeus e posteriormente absorvido e utilizado por correntes magísticas. Em algum momento, criou-se o conceito oposto das Sephirot, as Qliphot. Muitos a vêem com um oposto complementar, outros como um oposto nefasto. Alguns cabalistas apenas a definem como rejeitos do Criador (o reino de Sitra Ahra, o “outro lado”), onde a luz do criador não toca, a expulsão do paraíso. Alguns também acreditam que ela é desnecessária pois as Sephiroth já possuem estes conceitos em si e não seria necessário outra árvore exclusiva para ela. Vou propor uma visão divergente.
Acredito que em algum momento da história, foi dado ênfase apenas na parte altruísta da Árvore da Vida, os defeitos como tudo aquilo que não fazia parte do ideal e utópico da mente humana foi sendo rejeitado. Muitos povos antigos que eram nações inimigas das que estudamos ou temos uma maior herança cultural hoje (judaico-cristã), eram tidos como selvagens, os outros, os demônios, aqueles que a luz do nosso Criador não toca. Essa analogia foi feita para definir os que são (uma identidade daqueles que fazem parte do clubinho) e os que não são (uma alteridade daqueles que não são como nós). Análogo a isso, o termo diabolos significa aquilo que nos separa.
Essas separações tem como objetivo criar os processos identificatórios, sabendo quem você não é, você delimita tudo aquilo que esta fora da sua tribo/clã/povo/nação. Não faz sentido dizer que algo é um mapa da consciência humana, se ele não foi usado de forma universalista e ficado recluso a um único povo que cultuava apenas um único deus, onde claramente o deus do outro era demonizado, assim como o povo tido como selvagem.
Criou-se a necessidade dos magistas de estudar a face não altruística da Árvore da Vida, por isso foi criado os conceitos das Qliphot. Com um estudo mais aprofundado, é possível perceber que ela representa os instintos humanos, o lado mais selvagem do homem. Essa demonização, a construção simbólica de “trevas”, rivalidade, antagonismo, é análoga às que foram feitas com povos que eram diferentes. É a tentativa de desligar o homem de seu lado selvagem, afastando-o da sua natureza, para se aproximar de uma imagem mais ideal e perfeita (mas ela só é perfeita se for da sua nação, sua tribo).
A criação das Qliphot serve para os dois objetivos, de um lado, a demonização de tudo aquilo que é instintivo (te afastando dela através do medo), de outro, a possibilidade de estudar a nossa natureza.
Como visto no texto Um nome para o Universo, as interpretações do Todo (pertencente as correntes RHP), herdam essa visão altruística da Árvore da Vida, a evolução como a associação com o Criador, dissolvendo seu ego e se tornando Uno.
A interpretação mais universalista parece ter vindo com as correlações mais simbólicas que os hermetistas fizeram, traçando os paralelos entre diferentes panteões, essa é uma visão mais recente e moderna.
Apesar de ser uma tentativa de unir todos os povos em algo comum, também acaba sendo distorcida, pois muitos tentam pôr tudo abaixo do mesmo guarda-chuva, de um único Criador. Este é o grande problema de se apropriar de uma teoria que fazia uma distinção de povos, através da identificação, e tentar fazer com que todos se encaixem nela. Não é porque existam semelhanças e paralelos que são a mesma coisa. Todos são guerreiros, mas Ogum não é Marte nem Ares. Isso cria uma perda da riqueza cultural, que é exatamente aquilo que nos diferencia e nos enriquece como humanidade, não aprendemos através do mesmo e sim do que é diferente.
Os povos xamânicos, eram tidos como selvagens. As grandes heranças pagãs não fazem essa distinção binária, pois entendem a importância da união com aquilo que o rodeia.
O estudo atual da Árvore da Morte se torna importante, pois a herança cultural enraizada na nossa sociedade, tem origem judaico-cristã. Muito do que chegou hoje pra nós se transformou na rejeição de nossos instintos animais através daquilo que é pecado. Uma via ilusória e focada apenas no lado utópico e ideal que o ser humano pode atingir (se ele quiser), sem que este lado instintivo também seja desenvolvido e reconectado com a natureza (afinal é isto que nos torna humanos).
Resultado: esse mar de servidão e escravidão social, onde somos influenciados por aqueles que detêm o poder.
Todos os ritos sociais, são mitos criados pelo homem. Você pode se perguntar: por que devemos casar? Ter filhos? Abrir uma empresa de sucesso? Ter estabilidade financeira através de um concurso? Ser felizes? Postar frases motivacionais nas redes sociais? Fazer textão? Todos os mitos sociais foram criados estimulando nossas necessidades instintivas, que acabam sendo projetadas nas nossas reações emocionais, que de alguma forma precisam ser supridas.
Vemos romances em todos os lugares desde a infância, até que por repetição, acreditamos fielmente que precisamos disso para sermos felizes e vivermos um conto de fadas. Essa repetição simbólica, cria um processo identificatório no nosso imaginário. Através dele, cria-se uma necessidade emocional a ser suprida, com isto, consumimos os mais diversos artefatos (tecnologia, conteúdo de webcelebridades, fastfood, comida vegana, remédios, pornografia, livros, etc.)
Se você estudar a história do cinema, verá que os grandes signos sociais, estavam atrelados aquilo que era expostos nos filmes. Um ótimo exemplo disso é a jornada do herói. Vemos tanto isso em tantos lugares, que se alguma história audiovisual não se encaixar nesse padrão, causará estranhamento. Toda a nossa realidade é baseada nesse comportamento.
[SPOILER ALERT: se você não viu o anime e pretende, continue lendo depois da imagem de Black mirror]
Eu usei algumas imagens do anime Attack on Titans, porque ele é uma metáfora do que eu estou ilustrando aqui. Toda a cidade vive cercada por muralhas gigantes, mantendo o povo seguro (Paraíso) daquilo que está lá fora (Sitra Ahra). O que há lá fora? Titans que agem pura e instintivamente, matando e se alimentando de humanos. (é uma subjetiva demonização dos instintos). E algum momento, a muralha é quebrada (processo onde o tensionamento dos instintos quebra a barreira da zona de conforto e nos obriga a agir). Depois de alguns episódios, um dos personagens também descobre a possibilidade de se tornar um titan (começa o processo de reconhecimento do lado instintivo em si, e a tentativa de domá-lo, evitando a destruição pelos aspectos que não foram domados ainda). Há um choque entre outra pessoa que já tinha conhecimento e possibilidade de se transformar em um titã (uso nocivo daquele que já tem conhecimento sobre o outro lado e o usa para benefício próprio). Ainda há subjetivamente no anime uma espécie de revolta com algo, que não está claro ainda, pois parece que tudo foi criado propositalmente (é o reflexo da revolta e da tentativa de esquecimento e de reconhecimento de que as coisas são como elas são). Posteriormente se descobre que há um titan dentro da muralha (o aprisionamento dos aspectos instintivos nos protegem e nos mantem longe do desconhecido).
Essa analogia é suficiente não apenas para ilustrar o meu ponto de vista, mas também porque tudo isso é percebido pela mente subjetiva, em todas as informações que chegam até nós. Porém, apenas poucas pessoas tem as ferramentas para compreender a mensagem de forma consciente.
Toda essa rejeição aos instintos causa reações destrutivas nas relações sociais do homem. O Brasil é um país conservador e preconceituoso, mas lidera os rankings de pornografia. Isso é reflexo de todo o lado selvagem que é reprimido e não tem por onde sair. É isso que gera toda a intolerância do fundamentalismo. Demonizamos tudo aquilo que nos diferencia, querendo que tudo fique igual. O reconhecimento do nosso Ego como parcela indivisível, é importante para que possamos evoluir. Aprenderemos com aquilo que é diferente, experimentando pequenas novas realidades que estão além de nós mesmos.
Enquanto não vermos Vida e Morte como partes de um mesmo processo, não poderemos reconhecer as diferenças que nos tornam mais ricos como humanidade, ficaremos presos numa realidade ilusória, utópica, querendo destruir aquilo que nos diferencia, que nos torna aquilo que somos.
Aqueles que apenas tentam escalar as Árvores de Mentiras, nunca comerão do fruto do conhecimento, não terão o fogo dos deuses. Nunca verão o que existe fora do paraíso, onde foram presos e confinados a acreditar que é o limite de tudo aquilo que existe. Aqueles que se confinam nas trevas, sem nunca ver que há uma luz dentro de si (e dos outros), ficarão cegos e presos para sempre na escuridão.
“[…] Eu vos revelo um grande mistério. Vós estais entre o abismo do alto e o abismo da profundeza.
Em qualquer um destes vos aguarda uma Companhia; e aquela Companhia é Vós mesmos.
Vós não podeis ter outra Companhia.
Muitos se ergueram, sendo sábios. Eles disseram «Buscai a Imagem brilhante no lugar sempre dourado, e uni-vos com Ela.»
Muitos se ergueram, sendo tolos. Eles disseram, «Descei até o esplêndido mundo sombriamente escuro, e desposai-vos com aquela Criatura Cega do Lodo.»
Eu que estou além da Sabedoria e da Tolice, me ergo e vos digo: realizai ambas as núpcias! Uni-vos com ambos!
Cuidado, cuidado, eu digo, a fim de que não busques a um e perdas o outro!
Meus adeptos se mantêm em pé; sua cabeça acima dos céus, seus pés abaixo dos infernos. […]
– Liber Tzaddi vel Hamvs Hermeticvs
1 comentário
Gostei do texto e da analogia. Contudo, incomoda-me o uso néscio de palavras como “consciente” e “Ego” associando a um fator social de dominação, no qual não há uma correlação direta pela base epistemológica do uso de tais palavras.