Muitos já viram imagens de complexos sigilos, normalmente organizados de forma circular, e imediatamente associaram com os povos nórdicos e suas práticas de feitiçaria. Chamados de “galdrastafir” (algo como “bastão mágico” em islandês antigo), esta técnica foi muito característica de uma Islândia tardia (e já convertida), sendo erroneamente ligados a Era Viking pela cultura-pop. Analisaremos seu contexto histórico e a forma que influenciam praticantes contemporâneos de magia nórdica.
Imagem destacada: parte do Manuscrito de Huld, importante
fonte preservada sobre os galdrastafur
A Islândia começou a ser colonizada por noruegueses ainda pagãos no final no século 9, estabelecendo um governo descentralizado e de certa forma representativo. Entre a aristocracia haviam chefes chamados de “goði“, que combinavam o papel de líder tribal e sacerdote e decidiam as leis locais em assembleias coletivas. Foi em torno do ano 1000 que uma destas assembleias decidiu por uma conversão parcial ao cristianismo; estava determinado que embora o paganismo estivesse proibido publicamente (como religião cívica) ainda estava permitido como religião privada (culto doméstico), formando um período onde ambas as culturas se mesclavam. Muitos dos goðar se ordenaram ao sacerdócio cristão, e nesta época que passou a haver uma grande valorização da literatura e o registro escrito pelos islandeses – as Eddas e sagas teriam sido compiladas por monges entre 1120 e 1400.

Porém, foi apenas a introdução da Reforma Protestante na Islândia do século 16 que sua tradição magística começou a obter a forma que conhecemos hoje e se tornaria tão icônica. Era muito comum que a nobreza enviasse filhos para serem educados na Alemanha (além de outros países nórdicos) e retornassem com o conhecimento monástico, onde muitas vezes tinham contato com grimórios da magia renascentista como a Clavícula de Salomão e seus pantáculos. Neste período que teriam surgido os “galdrabókar” (algo como “livros de magia”), os grimórios próprios da Islândia, compilando não apenas inúmeros sigilos como também “receitas” com funções diversas. A influência da Clavícula era tamanha que em certos manuscritos existem pantáculos e selos da mesma que foram redesenhados ou mesmo simplesmente copiados.
Assim, por mais que houvessem influências e resquícios do paganismo especialmente na ativação, os galdrastafur não foram utilizados em um contexto pagão; embora filmes e seriados costumam a retratar eles como iconografia da Era Viking (final do século 8 até meados do 11), muitas vezes em escudos e estandartes, tais sigilos também não faziam parte das práticas do continente europeu e foram uma exclusividade islandesa em tempos antigos. Seus usos eram principalmente para atender a necessidades da população comum da ilha, como garantir a pesca, evitar ladrões e se proteger do clima ruim. Também eram muito comuns sigilos para questões amorosas, fertilidade e prosperidade, e para ataque contra inimigos.
Entre os traços do paganismo, podemos notar que alguns galdrastafur foram nomeados de acordo com lendas (como o famoso ægishjalmur, “elmo do terror”; o nome é derivado de um item mágico presente no tesouro do mito do dragão Fáfnir), enquanto outros usam como palavra de poder o nome de uma divindade ou entidade antiga. Algumas instruções para ativação incluem evocações de deuses pagãos, porém outras os configuram como “seres malignos” que devem ser banidos. O mais comum era fazer uso de orações e bênçãos cristãos, junto de elementos como óleos extraídos de gordura animal, partes como presas e garras, couro e ervas locais.

Quanto aos métodos de criação dos sigilos, a maior parte deles se perdeu no tempo e supõe-se que cada magista teria desenvolvido seu próprio. Entre especulações, alguns parecem ter sido feitos com um método similar aos sigilos caoístas contemporâneos – uma palavra ou frase tinha seus caracteres unidos em um glifo; os seis galdrastafur registrados por Jón Árnason seriam um caso bem evidente, onde foram usados nomes de divindades como base. Alguns especulam que certos magistas possuiriam um “código” onde cada letra era substituída por um bastão ou outro elemento estético que compunha o sigilo e escondia seu intento, enquanto outros que elementos em particular presentes nas estruturas possuiriam algum significado próprio. Supõe-se que as formas de criação de um sigilo eram segredos muito bem guardados por mestres e repassados apenas a pessoas selecionadas de forma oral. É importante reforçar que, embora ainda houvesse uso do alfabeto rúnico (que já estava caindo em desuso em prol do alfabeto romano), os caracteres não eram considerados mágicos e possuidores de significados individuais como em sistemas usados hoje – inclusive na época estava em vigor formas tardias do younger fuþark, e é possível encontrar galdrastafur onde seus caracteres estão misturados aos do alfabeto romano.
É inegável a influência que a estética das práticas islandesas tiveram sobre o imaginário atual em torno dos povos nórdicos. Além disso, talvez devido a equívocos que pessoas que os viram como uma espécie de magia rúnica pagã, tornaram-se um foco de interesse daqueles que se voltaram ao paganismo com propósitos magísticos. Sabemos que muitas vezes, quando um povo era convertido ao cristianismo seus hábitos e costumes eram apropriados e ressignificados dentro da nova religião; porém, com os galdrastafur, podemos observar o oposto ocorrendo hoje em dia – magistas seguidores do paganismo, interessados esta prática concebida já dentro do cristianismo, estão a recontextualizando e transformando em sistemas de magia pagã.
De forma similar ao que ocorria na Islândia, os magistas pagãos de hoje que se inspiram nos galdrastafur costumam a criar os seus próprios métodos de sigilização baseando-se nos registros antigos, simbologia e nas associações rúnicas. É muito comum que estudos de magia do caos não apenas de sigilos como também de criação de sistemas sejam usados como base, tanto teórica quanto prática. Para preservar o aspecto ancestral e a referência nos costumes dos povos antigos, muitos gostam de adicionar conhecimentos de magia natural ou mesmo folclore local na construção de suas metodologias.

A variedade de possibilidades que encontramos hoje é muito ampla. Alguns propõe elementos gráficos que representariam elementos específicos da iconografia pagã, como o Tear do Destino ou o martelo de Þórr; e embora o sistema de significados das runas tenha se popularizado e também utilizado para compor galdrastafur, falantes de idiomas nórdicos preferem ignorá-los e trabalhar com palavras e frases escritas em runas ou mesmo atribuir significados pessoais a elas. Também existem aqueles que adicionam valor artístico para a exposição de seu trabalho magístico, dentre os quais se destaca o dinamarquês Ræveðis (com práticas que combinam a estética elaborada e o saber magístico com o folclore da Jutlândia, sua região natal). É importante frisar que os códigos e legendas criados por um autor só pode ser usado para analisar um sigilo feito dentro do sistema do mesmo – é comum vermos na internet cifras como a proposta por Edred Thorsson em seu sistema de galdrastafir (que sugere usá-los como um “mapeamento energético”, onde cada elemento presente modificaria a energia liberada) como algo que serviria para explicar todos os sigilos antigos, o que está longe da verdade.
Sabemos que tudo sempre está em movimento, e que partes muito diferentes entre si podem em algum momento dialogar. Foi assim que os islandeses criaram os galdrastafur em um passado onde o paganismo já era uma lembrança distante, e também o modo no qual esta tradição se tornou sistemas de magia praticados pelos pagãos de hoje. Trabalhar com os galdrastafur hoje em dia pode não apenas ser um exercício de envolvimento com a simbologia pagã, como também uma forma de criar uma ferramenta pessoal e usar a criatividade mesmo dentro de um meio pré-estabelecido.
Sjáumst bráðlega!
Além de seu trabalho artístico e magístico pessoal, Ræveðis também coordena o projeto galdrastafir.org onde imagens em alta resolução e grimórios originais escaneados são disponibilizados gratuitamente. Vale a pena conhecer para se aprofundar mais na sigilização islandesa.
3 Comentários
Tenho uma pergunta sobre a utilização dos símbolos em tatuagens, por exemplo o Helm of awe era desenhado na testa, se ele for tatuado em outro local do corpo surtirá o mesmo efeito?
Não recomendo tatuar nenhum sigilo retirado de grimórios antigos.
Tem informações sobre essa troca e a relação de sigilos islandeses com a Clavícula de Salomão nos livros de Stephen Flowers, especialmente o Icelandic Magic. Muitos pantáculos salomônicos redesenhados estão no Manuscrito de Huld, dá pra ver ele scaneado aqui: http://www.galdrastafir.org/