Divindades e Patrões Exigentes

Nos mais diversos meios pagãos hoje, é muito comum vermos pessoas falando sobre terem se dedicado a alguma divindade (ou mesmo um grupo delas) ou alegando possuir algum tipo de patronato; mas seria assim tão comum ou tão simples obter um contato tão profundo com os deuses? Após escrever sobre o impacto que alguns aspectos de Óðinn podem ter sobre um devoto, decidi falar de forma mais ampla sobre a construção da relação entre as pessoas e os deuses com enfoque no paganismo nórdico.

Imagem destacada: Shadow e Mr.Wednesday na adaptação em seriado de Deuses Americanos, lembrando vocês que ter uma divindade por perto o tempo todo pode não ser exatamente bom…

A primeira coisa que deve ser esclarecida antes de prosseguirmos, é que o tema será discutido tendo em vista o paradigma de que “divindade” é um tipo grande e poderoso de entidade externa a nós, habitando seu respectivo Mundo. Embora não seja o mais popular atualmente entre magistas e ou seja hegemônico em vias pagãs (nórdicas/germânicas ou não), muitas pessoas discutindo e alegando uma relação próxima aos deuses apresentam visões muito próximas (se não dentro) deste paradigma; e temos Mistérios importantes para uma vivência pagã que são acessados através dele. Devemos enxergá-los como seres ocupando uma alta posição em um escalão, e que embora sejam mutáveis também sempre acabam permeados por determinados aspectos.

Assim, a dedicação aconteceria quando uma pessoa começa a direcionar seus trabalhos espirituais de acordo com uma divindade e obtém um relacionamento profundo; e o patronato (em nórdico antigo chamado de “fulltrui“) seria uma situação onde um deus decide favorecer uma pessoa em particular, sendo que muitas vezes esta pessoa é vista como “afilhada” do deus. Aparecem constantemente na mitologia, onde linhagens reais heroicas traçariam tanto um fundador com um pai divino (normalmente Óðinn ou Freyr, embora talvez lendas de um período anterior a Era Viking possam apontar Týr) quanto a interferência frequente dele em seus descendentes – as sagas dos Völsung e dos Yngling são os exemplos mais famosos. No caso do patronato, muitas vezes era retratado como uma espécie de “amizade” entre um herói e um deus – como é demonstrado no favorecimento e aconselhamento de Þórr ao protagonista da Eyrbyggjasaga, e em Freyr apreciar tanto um nobre da Gisli Saga que após sua morte fez com que seu monte funerário permanecesse verde mesmo durante o inverno.

Patronato na HQ
Patronato na HQ “Vikings” – o tema continua recorrente em obras atuais sobre os antigos

Colocado isto, é importante termos em mente que no paganismo germânico se estabelece uma relação com qualquer entidade através do “dou para que me dês”. Nem os deuses nem seres intermediários atuarão gratuitamente na vida de alguém; sempre será uma via de mão dupla, havendo muitos poemas e sagas que mencionam ditados como “a dádiva sempre busca pelo pagamento”. Uma dedicação só aconteceria após um extensivo trabalho e muitas entregas à divindade, não sendo um caso de mera decisão do praticante; da mesma forma, um patronato não ocorre devido a uma identificação (“eu sou vaidosa, portanto devo possuir Freyja como meu patrono!”) ou preferência pessoal – mas sim quando a divindade se aproxima e estabelece um contrato interessante para ambos. Normalmente, é o deus quem fará o primeiro contato quando notar que os feitos de uma pessoa estão muito alinhados com os interesses dele.

Justamente por envolverem concordância de ambos os lados, estas relações nem sempre são imutáveis e infinitas; o trabalho pode ser declarado por “encerrado”, os interesses de um dos lados podem mudar ou mesmo um deles pode se ver ofendido pela outra parte e terminar a relação. Como dito anteriormente, elas exigem que a pessoa comece a assimilar aspectos e as espelhar, portanto haverão mudanças internas e externas – apesar de comumente um patronato ser associado com glórias e recompensas oferecidas por uma divindade, o indivíduo paga preços profundos para mantê-lo e têm suas vidas profundamente impactadas. Pensem como se fosse um trabalhador que chama a atenção de seu chefe e por isso ganha muitos bônus, mas está sempre sob um olhar atento que captará qualquer deslize. Estes deveres e sacrifícios que fazem parte do patronato, trazendo muitas vezes diversos infortúnios ao indivíduo, torna no mínimo infantil o caso de pessoas que anunciam possuir um em comunidades na internet, como se buscassem adicionar algo “bonito” para os outros verem em seu trabalho.

Um erro muito comum entre iniciantes que se aproximam de uma via pagã é acreditar que precisam de um patronato para praticar. Este tipo de relação com os deuses é uma exceção e não uma regra, não é necessário nada do gênero para vivenciar o paganismo e homenagear seus deuses de culto normalmente; talvez esta noção venha de uma confusão dos conceitos pagãos de uma pessoa afilhada por uma divindade com o das religiões afro onde cada pessoa seria “filha” de um casal de deuses, sendo abordagens de ideias muito diferentes. Outro equívoco é, diante de um processo de dedicação ou após ser detectado o patronato, a pessoa se esquecer dos outros deuses; como politeístas, é normal libarmos para Freyja pedindo uma cura, para Óðinn pedindo por esclarecimento e Forseti pedindo por justiça independente de termos ou não um trabalho mais profundo com uma outra divindade – nossos deuses não são absolutos e não abrangem todas as áreas que podemos precisar individualmente, transformar seu culto em um henoteísmo seria equivocado e desrespeitoso com o resto do panteão.

Também é importante destacar que o paganismo germânico crê em entidades intermediárias (vættir), que também recebiam cultos e poderiam ser destinadas oferendas para que nos favorecessem. Justamente por seu patamar elevado que uma divindade pode ser tão inacessível e que o patronato seria um caso tão raro; o espírito de uma pessoa que um dia esteve entre nós, um elfo (álf) ou mesmo um jötunn está mais próximo de Miðgarðr que um áss ou vane, por isso tem mais chances de se interessar pelo trabalho de alguém e estabelecer uma relação de longo prazo. Tenham isto em mente e, quando precisarem de algum tipo de intervenção que seja mais duradoura, considerem lidar com os vættir ao invés dos regin (deuses).

Portanto, não tratem o patronato como se fosse uma mera questão de identificação pessoal ou algo para colorir suas práticas quando falar delas na internet. Os deuses são patrões muito severos e exigentes, dispostos a virar de cabeça para baixo a vida daqueles que se dispõem a trabalhar junto deles a longo prazo. Tal tipo de relação está longe de ser o foco da religiosidade pagã, e quando detectada deve ser encarada com toda a seriedade que exige – reflitam muitíssimo antes de aceitar as ofertas de uma divindade, mesmo que pareçam generosas!

Sjáumst bráðlega!

-Ravn

 

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