Na narrativa do Talmud sobre uma discussão interminável entre os grandes Hillel e Shammai, D’us precisou interferir diretamente para solucionar a disputa. Nem cem anos mais tarde, em outra disputa insolúvel, agora entre Eliezer e Yehoshua, D’us foi impedido de se pronunciar. A narrativa marca a vitória da interpretação e do diálogo sobre a profecia e imposição religiosa.
A história foi registrada no Talmud como tendo ocorrido ainda no primeiro século da Era Comum e, em tempos de ameaças ao estado laico, vale a leitura.
O Forno de Achnai
Rabi Eliezer e Rabi Yehoshua discutiam sobre a pureza de um forno de barro, então chamado forno de Achnai. Achnai é “serpentear”, pois Rabi Eliezer e Rabi Yehoshua teriam girado, real e metaforicamente, em torno do forno de barro dezenas de vezes com seus argumentos, cobrindo cada possível interpretação sobre a pureza do forno. Rabi Eliezer argumentava que o forno era impuro. Rabi Yehoshua negava-se a ser convencido.
– Se a halachá (os costumes judaicos) é como eu digo, essa árvore provará – disse Rabi Eliezer.
A árvore, uma alfarrobeira larga de raízes visíveis, saltou no ar até uma altura de 100 cúbitos. Rabi Yehoshua nem piscou:
– Não se pode provar nada com uma alfarrobeira.
Rabi Eliezer não desistiu:
– Se a halachá é como eu digo, esse aqueduto provará.
As águas do aqueduto começaram a correr no sentido contrário. Ainda assim, Rabi Yehoshua não se impressionou:
– O que o aqueduto e suas águas entendem da Halachá?
Rabi Eliezer procurou, então, entendidos na Halachá:
– Então, se a Halachá é como eu digo, as paredes do beit hamidrash – escola de estudos hebraicos e religiosos – provarão.
Quando as paredes da escola começaram a se curvar, Rabi Yehoshua visivelmente contrariado repreendeu:
– Se estudiosos estão disputando assuntos da Halachá, quem são vocês para interferir?
As paredes pararam em diagonal, nem caindo e confirmando Rabi Eliezer, nem se endireitando e confirmando Rabi Yehoshua. Dizem que a escola tem as paredes em diagonal até hoje.
Mas Rabi Eliezer ainda não se deu por vencido contra a cabeça-dura do Rabi Yehoshua:
– Então, se a Halachá é como eu digo, os Céus provarão.
As nuvens escureceram e o céu se abriu em um raio único de luz. Uma voz como trovão proferiu:
– Rabi Yehoshua, por que discordas do Rabi Eliezer se a halachá sempre é como ele diz em todos os casos que já discutiram?
Sem nem esperar a frase se completar, Rabi Yehoshua já respondia com a mão esguida:
– Lo ba’Shamayim hi! – Não está nos Céus! Referência direta a Devarim/Deuteronômios 30:12. A Torah não está nos Céus. A Torah foi dada por D’us aos homens para que a aprendessem, discutissem e concordassem sobre ela. Não cabe a D’us mais legislar.
Neste dia, D’us teria dito feliz ao Profeta Eliyahu, sentado a Seu lado: “Meus fihos me venceram! Meus filhos me venceram!”
Apesar de toda sua sabedoria e seu conservadorismo, Rabi Eliezer mais tarde foi acusado de heresia e foi excomungado. Dizem que gostava de ouvir as lendas e parábolas do tal nazareno. Outros dizem que o problema dele é o que hoje tem nome de machismo.
Quando Eliezer deitou-se em seu leito de morte, seus antigos alunos e colegas viajaram até a Cesareia para visitá-lo. Sentaram-se em torno da cama do grande sábio e, reconhecendo sua sabedoria, questionaram Eliezer sobre a Halachá e diversas outras decisões rabínicas que haviam sido proferidas enquanto ele estava distante.
A última palavra que o grande Eliezer proferiu foi “tahor”, puro. O rabinato tomou como um auspício sobre a pureza de sua vida.
Apesar dos anos em exílio, Rabi Eliezer ben Hyrcanus é o sexto rabino mais citado no Talmud.
O próprio Rabi Yehoshua revogou a excomungação de seu colega Eliezer.
Shbaa.
2 Comentários
Excelente. Não “puxa” pelo raciocínio como “A Primeira Família em um trem que nunca vai chegar” , é tocante logo na primeira leitura ( foi assim para mim).
José Elias
Que bom que gostaste, José. Essa história foi retirada quase diretamente do Talmud. É bem conhecida, eu apenas alterei a linguagem para algo mais leve.