Espiritualidade, Alma, Vida após a morte, Memética
“E o pó volte à terra, como o era;
e o espírito volte a Elohim, que o deu.”
(Eclesiastes 12:7)
Fantasmas. Espíritos. Almas penadas. Nossos ancestrais que vagam pelo mundo mesmo depois de terem falecido. Depois de terem deixado a vida do corpo de carne.
Muito se escreveu sobre o que ocorre com as almas após a morte. É certo consenso sobre as experiências com espíritos de parentes falecidos. Zeitgeist do povoado. Antepassados que cuidam da aldeia. Avós que protegem os netos. Tios jovens que voltam em sobrinhos. Reencarnações de grandes soberanos. Novas chances de ter duas vezes o mesmo filho.
O judaísmo registra alguns casos de pessoas especiais que precisam completar alguma missão mesmo após a morte. Eliyahu haNavi, o Profeta Elias, por exemplo. Ele retorna a cada Pessach, a “páscoa judaica”, e supervisiona cada Brit Milá, a circuncisão dos meninos aos 8 dias de vida. Eliyahu, como os profetas mitológicos, cuida da travessia. No caso do profeta judeu, vela a porta de entrada para este mundo dos vivos. Já na tradição oral, diz-se que todos antepassados voltam para comemorar todas as passagens importantes da vida. A cada nascimento, a cada festa de bar Mitzvah, a cada casamento, pais, avós e bisavós já falecidos podem vir comemorar com os vivos as grandes alegrias.
Mas a influência dos mortos sobre os vivos não para por aí. Mortos encontram diversos modos para se manterem entre os vivos…
Comentaristas da Torah pareciam concordar que necromantes eram charlatães. Na época de Rashi, segunda metade do século XI, dizia-se que falar com os mortos era algo que ocorria na imaginação do consulente. Isso não impediu os judeus de criarem encantos e selecionar bênçãos para se protegerem dos espíritos maus. Porque, reais ou imaginários, os mortos ainda simbolizavam algum tipo de problema.
No século passado, Roland Barthes propôs um objeto de estudo ao qual chamou “mito”. O “mito” de Barthes não era a história em si, mas uma espécie de bichinho “que vive na linguagem”. Os mitos se reproduzem, multiplicam e evoluem. Ocupam o sentido conotativo das expressões cotidianas. Por exemplo, quando uma revista de fofocas escreve “Juliana, 28 anos, 3 filhos, vai à praia” e “Alberto, advogado, atravessa a rua”. O mito é a crença de que a mulher deve ser descrita pela idade e capacidade de ter filhos e de que o homem é descrito pela sua profissão. O mito de Barthes é fruto da construção social da pessoa e da própria linguagem em cima de uma sequência semiológica pré-existente. Uma herança viva.
A ideia, vista do ponto de vista evolucionista, aparece em seguida, no mesmo século — para uns, ainda história recente — nas palavras de Richard Dawkins para descrever o meme. Para Dawkins, existiriam unidades dentro da cultura que poderiam ser transmitidas e que estariam sujeitas às leis da evolução. O meme, se não específico da linguagem como o mito, sobrevive reprodução da cultura dos povos. Tem mais força na interação dentro da família, no “proselitismo” de mais para filhos. Mas também na cópia do sotaque do primo, na repetição do refrão da música do elevador, na citação do livro centenário, nos versos mosaicos.
Pense no Dicrocoelium dendriticum. O Dicrocoelium dendriticum é um verme parasita que precisa chegar ao estômago das vacas ou ovelhas para completar seu ciclo. Como ele faz isso? Ele sequestra o cérebro de uma formiga e a comanda a ficar no topo de uma folha de capim. No topo da folha, a formiga é devorada pelas vacas e ovelhas. Os memes funcionariam do mesmo jeito. Sobreviveriam obrigando os seus portadores a serem também vetores, propagando as ideias. É o proselitismo. É a metáfora — é metáfora também quando é real? — para o extremismo do religioso suicida. A ideia faz com que nos matemos para perpetuá-las. A vida real tem essa mania de atualizar antigos mitos. Ou, sendo mais específico às ideias de Dawkins, líderes religiosos se aproveitam, para fins mesquinhos, da forma como o cérebro é programado para manter e reproduzir ideias e comportamentos.
Embora Dawkins possa argumentar que a experiência religiosa é um tipo de delírio, ela é uma experiência real para o corpo e para a mente dos envolvidos.
Dois anos atrás, emergiu a partir de comentários do YouTube a versão modernizada do anedótico encontro do filho com o fantasma do pai. o jovem encontrou encaixotado em casa um velho Xbox, guardado desde 2002 ou 2003. Abriu o console, tirou da caixa. Reinstalou na TV.
O console havia sido usado por anos, quando o jovem ainda era uma criança, para jogar com e contra o pai. Aos seis anos, o então menino perdeu o pai. O jovem acabou deixando de lado o console, voltando a abrir o velho Xbox apenas dez anos depois.
Dos jogos guardados, ele lembrava de competir contra o pai por horas e horas a fio em um jogo chamado RalliSport Challenge. Um jogo de corrida de carros. O jovem reabriu o jogo e notou algo especial… um fantasma.
Jogos de corrida, quando não permitiam jogos player versus player — daqueles em que dois jogadores podem se ver na tela de TV e jogar ao mesmo tempo — permitiam que a melhor pontuação fosse gravada para que os outros jogadores tivessem um “melhor desempenho” com quem competir. No caso dos jogos de corrida, o jogo desenhava a melhor volta do jogador recordista de cada pista na forma de uma carro transparente que repetia esse desempenho — um fantasma contra quem os outros jogadores teriam de competir.
Esse carro fantasma era a melhor corrida do pai do jovem. E o jovem correu contra esse carro diversar vezes, até um dia ser capaz de bater o tempo do pai. Nesse dia, ele ultrapassou o carro-fantasma e correu até parar logo antes da linha de chegada, garantindo que o recorde do pai nunca fosse apagado.
Freud poderia tecer centenas de páginas sobre essa relação. Mas aqui nos importa o fantasma.
Aprendemos a ver o mundo de soslaio. Antigos primatas ouviam um barulho de folhas e viam algo se mexer pelo canto dos olhos. Aqueles que “viram” um outro animal ali escondido, fugiram, viveram e se tornaram nossos antepassados. Os que acharam que não era nada, morreram quando, eventualmente, era mesmo uma onça.
Há isso. E há o costume. A memória. Quando meu cachorro morreu, demorou boas duas ou três semanas para que eu parasse de vê-lo descansando sobre o sofá ao chegar em casa. Quando me virava para chamá-lo, era de novo só uma almofada escura. Ele estava lá sempre que eu não prestava atenção.
O cérebro sempre acha que há um agente atuando em tudo o que vemos. Há um causador no movimento das folhas, na luz do relâmpago, no movimento da Lua. E há um agente nas emoções, na dor, na perda.
Somos levados a acreditar em experiências espirituais, em fenômenos da alma. Mas, se o pó volta à terra e o espírito volta a Elohim, o que é isso que fica aqui entre os humanos após a morte? Mesmo o Outro Livro ainda repete: a César o que é de César. O que sobra será sempre apenas outra construção mundana.
TL;DR. Quando vemos um fantasma, ficou o amor. Não aquele que por nós foi dado, mas aquele que oferecemos em vida. Apenas como reflexo do nosso próprio amor…
Shbaa.