Sábio, profeta, louco. Estereótipos literários, arquétipos mágickos. A figura de Tirésias é uma figura liminar. Ele é uma sombra que habita entre mundos. Entre o sexo, entre os deuses, entre a cegueira e a previsão, entre os vivos e os mortos.
Mitos, quando lidos corretamente, trazem na semiótica, na linguagem hermética, segredos codificados sobre o pensamento de um povo. Dos vários povos que contribuíram para a criação daquela narrativa. O mito de Tirésias traz o caminho de um xamã. Um xamã civilizado, mas ainda assim um xamã.
O xamã civilizado não é bem visto no judaísmo. A figura alegórica amaldiçoada do xamã é a de Balaam ben Beor. Dizem os antigos rabinos que Balaam era comparável com o próprio Moisés. O que Balaam abençoava era abençoado. O que Balaam amaldiçoava era amaldiçoado. Mas Balaam era um xamã sem povo (“belo am”).
Mas os sábios também comparam a figura do xamã ao do próprio Adam. Adam haRishon, o humano primordial, seria também a figura do próprio xamã primordial. Aqueles que buscam interpretar a Torah como realidade histórica, têm na imagem de Adam haRishon aquele que teve o primeiro contato espiritual entre os Céus e a Terra. O primeiro humano a ter conseguido se conectar com D’us. Essencialmente, o primeiro humano, pois, antes dele, antes da conexão com D’us, todos éramos meros animais.
Adam, o primeiro judeu, o xamã não domina a magia. O xamã é a magia. Ele é o ponto de ligação entre o céu e a terra. Entre o mundano e o fantástico.
Mas divirjo.
A mãe de Tirésias era Khariclo, ninfa acompanhante de Athena. O pai era Eueres, um pastor humano. Na versão curta e preguiçosa: Tirésias viu Athena nua. Athena o pune fazendo com que perca a visão. Khariclo pede a Athena visão de volta. Athena justifica que não pode fazer tal coisa. Conversa com Apolo, que concede a Tirésias o dom profecia. Tirésias se torna profeta de Apolo.
A visão nua da Sabedoria de Athena cega Tirésias para o mundo físico, mas abre o dom da visão para as causas ocultas, espirituais.
Na versão longa, talvez completa, Tirésias percorre um caminho longo, torto – e tortuoso – até a profecia. No começo da vida, Tirésias é apresentado como um jovem arqueiro que vai treinar sozinho em meio à floresta. O arco e a flecha simbolizam o ver longe, mirar, pensar, planejar à longo prazo. A floresta, a viagem à introspecção. Ao interior pouco civilizado de si mesmo.
Nessa floresta, Tirésias encontrou duas cobras enroladas. Pegou um pedaço de madeira. E bateu nas cobras. As cobras enroladas estão fazendo sexo. Simbolizam o próprio sexo e a magia sexual. Tirésias não sabia nada sobre sexo ou magia.
A agressão às cobras faz com que Tirésias seja punido. Ou essa é a interpretação grega vigente até hoje. Tirésias foi transformado em mulher. Tendo sido anteriormente homem, e amaldiçoado pela magia sexual, Tirésias se torna ótima prostituta. Uma prostituta de renome, pois sabe muito bem o que os homens gostam. Tirésias domina o poder do sexo. Em algumas versões, se torna sacerdotisa de Hera. Engravida. Dá à luz filhos e filhas.
Após sete anos vivendo como mulher, Tirésias encontra novamente duas cobras se enrolando. Agora ele sabe o que vai acontecer e bate novamente nas cobras para voltar a ser homem. Tirésias tem a sabedoria sexual de como é ser homem e como é ser mulher. _Mas, antes da iluminação, carregar água, cortar lenha. Depois da iluminação, carregar água, cortar lenha._ Tirésias volta a uma vida “normal”.
Outro dia qualquer, Zeus e Hera estão discutindo sobre quem tem mais prazer durante o sexo. O homem ou a mulher?
No compêndio de lendas gregas que chegaram até nós, Zeus e Hera são dois deuses pervertidos que vivem a apostar e desafiar um ao outro tanto moral quanto sexualmente. Isso é bem _off-character_, na verdade. Mas é, também, outra história.
Enfim, Zeus e Hera concordam em chamar Tirésias, que seria a única pessoa que experimentou prazer tanto sendo homem como sendo mulher. Tirésias respondeu:
– “De dez partes do prazer, o homem fica com uma, a mulher fica com nove.”
Zeus ganhou a aposta. Hera, furiosa, cega Tirésias. Afinal, um arqueiro cego não serve para nada. Zeus, por outro lado, agradecido, dá a Tirésias o poder da profecia.
Mas o futuro – e principalmente o conceito de futuro do tempo mitológico dos mitos gregos – é cíclico. Imagine ver “para frente” além da curva do horizonte. Isso é a profecia. Se você ver longe o suficiente, você vai ver suas próprias costas. Se você enxergar mais longe ainda, você vai ver a si mesmo várias e várias vezes. Cada vez é uma “iteração”. Uma repetição. Há coisas que podem ser mudadas e há coisas que não podem ser mudadas. É isso que Tirésias vê.
Dizem que Tirésias morreu com uma flechada de Apolo… circunstâncias variam.
Tirésias tornou-se um mito até mesmo para os gregos, que estenderam sua história além da expectativa da vida comum. Contando epopéias e o teatro clássico, Tirésias teria sobrevivido sete gerações de gregos. E, quando Ulysses desce ao mundo dos mortos, encontra lá Tirésias. O mundo dos mortos grego é o mundo do esquecimento, pois quem morre esquece do que aconteceu durante a vida para poder começar um novo ciclo. Mas Tirésias, por conseguir ver além da curva do horizonte, por enxergar o círculo completo, não esquece da vida e é o único capaz de conversar com Ulysses.
O mito de Tirésias é o do limiar. Aquele que aprende a conectar os dois polos, passa a não estar em a nenhum. Vive no intervalo, na tomada de fôlego, no contrapé, na decisão. Cidadão de dois mundos, não pertence a nenhum.
Shbaa.