Cabala Judaica #12: A Criação dos Quatro Mundos e Suas Inconsistências

Gênesis, inconsistências e a criação dos Quatro Mundos

Deixem eu apresentar uma leitura da Criação…

O sistema de criação de 7 dias e 4 mundos é encontrado por cabalistas na leitura de Bereshit/Gênesis. O livro é estudado como base para a cabala judaica. Judeus ainda hoje entendem que este livro codifica a cabala e não que foi codificado por estudiosos dela.

Primeiro verso

“Be-re-shi-t ba-r-a E-lo-h-i-m e-t ha-Sha-ma-y-im v-e-t ha-A-re-tz.”

O primeiro versículo apresenta os seguintes elementos:

  • 1 verbo (bara, criou)
  • 7 palavras
  • 28 letras (7 x 4) letras, mesma de “yichud”, qualidade da “Unidade” de D’us associada à esfera não manifesta de Da’at
  • 3 substantivos cuja soma conjunta é 777 (7 x 111) (ou 7 vezes o valor de aleph por extenso A+L+Ph, 1+10+100)
  • As primeiras 3 palavras contêm 14 letras. Significam “No princípio”, “criou”, “Elohim”. “Elohim” é o sujeito da criação mesmo que apresentado depois do verbo.
  • As 4 última palavras contêm 14 letras. Contêm o objeto da criação “os céus”, “e a terra”.
  • A primeira palavra tem seis letras (seis dias de trabalho). A sétima é repetição da primeira letra (Beth).
  • A primeira palavra começa com Beth e termina com Tav – são a segunda e a última letra do alfabeto hebraico. Onde foi Alef, a primeira letra?

Primeira Letra e Adam Kadmon

Alef, a primeira letra, é também uma letra que não possui som por si. Seu valor é 1 e, por extenso (A-le-ph), é 111.

Alef se apresenta como o mundo em que tudo está em potência. Antes de qualquer coisa “existir”, ela já existe como possibilidade. A cabala chama isso de Mundo de Atzilut. A palavra é traduzida como “estar próximo”, alegoricamente “estar em casa”. Quando a narrativa de Bereshit/Genesis se inicia, já não falamos mais de potencial puro, pois passa a ser atualizado.

Com o princípio dessa atualização, o segundo versículo apresenta os “elementos” originais da criação:

E a terra (aretz) existia desolada (tohu) e vazia (bohu); e a escuridão (choshek) sobre a face (panyim) do abismo (tehom). E o vento (ruach) de Elohim se aninhou (m’rachefet) na face das águas (mayim).

  • Tohu: mesma raiz de “deserto”; é interpretado posteriormente como o “chaos” original. Algumas traduções trazem “sem forma” em contraste com “vazia”. “Tohu” é adjetivo que indica uma qualidade inerente à terra original: a terra original está desconectada de todo o resto.
  • Bohu: vazio. Posteriormente, a cabala interpreta que “bohu” é “antes de zero”. Vem indicar que não só a terra original está desconectada (tohu) como também não há nada “dentro” dela, nem capacidade de vir a ter nada.
  • Panyim: literalmente, face. É usada para indicar tanto o “lado” que indica direção (assim como virar o rosto muda onde é nossa “frente”) de um objeto, quanto uma parte móvel. Indica que escuridão e abismo, vento e águas estavam se encontrando intencionalmente. Não estavam “ao lado” por coincidência uma da outra.
  • M’rachefet: literalmente “estendeu-se”, alegoricamente “deitou-se preguiçosamente”. A tradução “aninhou” (rara, mas prefiro pela poesia) normalmente serve pra evidenciar a relação de amor entre o “vento de Elohim” e as águas.

Lendo atentamente, a criação agora possui “terra”, que está isolada, e “vento” e “águas”, que estão namorando. “Tehom” passou a ser associado a muitas entidades distintas. Poucos se dão conta do paralelismo entre “escuridão sobre a face do abismo (tehom)” e “vento sobre a face das águas”. Se o deus-vento (Elohim) fecundou a deusa-água, o deus-escuridão fecundou a deusa-abismo?

Mas vamos interpretar por outro aspecto: “Tehom” indica profundezas e, mais tarde, se torna sinônimo das águas profundas, em oposição à superfície visível. A escuridão está na “face”, no “lado” profundo das águas, no interior, enquanto o vento cobriu (com trocadilho) a parte externa.

Ruach, Mayim e Choshek são, assim, os três elementos originais da cabala. Aretz seria a soma dos outros elementos que, antes de unirem-se, eram desolados e vazios. Essa primeira “terra” é o primeiro mundo. A fecundação dos elementos desencadeiam o nascimento de um segundo mundo, o mundo de Beriah, mundo da Criação.

Adam haRishon (Adão, o Primeiro)

Primeiro dia: noite e dia.
Segundo dia: céu e mar.
Terceiro dia: terra e vegetação.
Quarto dia: estrelas, céu e lua.
Quinto dia: peixes e pássaros.
Sexto dia: animais e humanidade (homem e mulher).

Quando Adão é criado, no sexto dia, Bereshit/Genesis já relata que foi criado “homem e mulher”: zakar e neqebah. Zakar é da raiz de lembrança. Neqebah é da raiz de perfuração. Mais especificamente “aquele que é perfurado”.

Então, Elohim criou Adão, do pó da terra, à sua imagem, lembrança e perfuração. Mais importante essa tradução quando lermos “conheceu” como “penetrou” em Bereshit/Genesis 4:1. “Agora o homem se tornou um de nós para penetrar o bem e o mal.” Mas me adianto… Tanto o abismo quanto a perfuração aqui são o mesmo motivo. O espaço de entrada entre os Mundos é a esfera chamada “Da’at”.

Adam ve Chavah

Todos devem notar que Adão é criado novamente em Bereshit/Genesis 2. Agora IHVH Elohim forma a partir da terra (adamah, mesma raiz de Adão e da cor vermelha, indica a terra vermelha, provavelmente argila). Todos os animais, peixes e aves são criados de “adamah”. Não só Adão. A explicação oficial de linguistas é “são duas versões diferentes” (dãã!). A explicação da cabala é que agora estamos falando do terceiro mundo, o mundo da Formação. IHVH Elohim não mais “cria”, mas “forma” (yatsar) Adão a partir do pó e todas as coisas a partir do “adamah”.

O mundo da Formação agora permite a polaridade, descrito na separação de Adão e Eva. Primeiramente chamados apenas Ish e Ishsha, que é Ish com terminação para palavra feminina. É apenas após o episódio da árvore da penetração (conhecimento) do bem e do mal que Ishsha ganha o nome de Chava (Eva, aquela que dá vida). Mas me adianto de novo.

No mundo da Formação, Ishsha é criada de uma “tsela”. A palavra traduzida como “costela” significa na maioria dos casos “lado”. Mais especificamente um dos lados complementares. É o nome dado a cada “folha” de uma porta, a cada um dos quatro “quadrantes” do céu, é o nome de cada uma das “pranchas de madeira” que formam o assoalho. Vale lembrar que enquanto o guardião do paraíso, os kerubim de Yechezkel/Ezekiel, são formados pelos animais dos quatro quadrantes: homem, leão, água e touro. Aqui, os quadrantes também estavam unidos.

Com a separação de Ish e Ishsha em Adão e Eva, formam-se os corpos humanos.

Adam “expulso”

A última parte da Criação é, então, co-criação (pra usar uma palavra tão “new age” que aparece até em propaganda de xampu).

O feminino herda a parte ativa da criação através de Chava/Eva, que colhe e come o fruto, fazendo com que IHVH Elohim faça-os descer para o quarto mundo, o mundo de Assiyah, o mundo da Ação. Finalmente, livres, para o bem e para o mal, uma vez que agora podem descumprir ordens divinas.

Você também vai gostar...

2 Comentários

    1. Do material mais acessível, há um pouco em “Kabbalah e o Êxodo”, de Z’ev ben Shimon Halevi. Outro tanto em “La cabala y su simbolismo”, de Gershon Scholem.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.