Cabala Judaica #5: Coisa, dvar – D’us criou as coisas pelas palavras

Depois dessas coisas1, a palavra2 de IHVH veio a Avrão em uma visão dizendo “Avrão, não tema: eu sou teu escudo e tua recompensa é grande”. (Bereshit 15:1)

Este texto dá um passo para trás, para avaliar a relação do hebraico com as palavras. Em especial, com a palavra “palavra”. Não se deixe confundir.

A palavra que seria traduzida para o Português como “coisa” é “dvar”. A árvore é uma dvar, o rio é um dvar, o céu é um dvar, uma pessoa é dvar. Mas, em hebraico, o significado de dvar é “palavra”. Então, quando o professor diz “D’us criou todas as coisas (dvarim)”, o aluno também escuta “D’us criou todas as palavras”.

No plural, dvarim, os significados também são fáceis de associar ao conceito original: palavras são argumentos, proclamações, discursos, histórias, sequência de eventos relatados. A tradição ocidental trouxe o conceito de dvar através de logos: palavra, raciocínio, argumento. Mas antes dela, outra tradução passou quase despercebida.

O que o judaísmo traduz como “mandamentos” são as 613 mitzvot: da raiz tzavá, comando. Os 613 mandamentos foram compilados por Rambam3. Aquilo chamado popularmente de “os 10 mandamentos”, entregues ao povo judeu através de Moshé, é originalmente “10 dvarim“. As 10 coisas, as 10 proclamações, as 10 palavras4. Os gregos chegaram perto ao usar o nome “decálogo” – deka+logos / dez palavras.

Hebraico também não tinha palavras específicas para argila, desejo e chuva. — claro que estes conceitos não eram os únicos difíceis de sintetizar em outras línguas. O hebraico possui dezenas de palavras para chuva, outras dúzias para terra – e adamah, de adão, é apenas um tipo muito específico de terra – mas nenhuma para argila. Por exemplo, ‘apar = “terra solta por cima do solo”, o mesmo tempo para “pó”, com o em “do pó viemos, ao pó voltaremos”. 

A ligação entre a palavra e a coisa, o objeto e o nome dado ao objeto é tão grande que permeia toda a tradição popular de origem hebraica. Não apenas na gematria, ao tentar corresponder letras e energias imanentes do objeto, mas na visão judaica da magia – a capacidade do ser humano de interagir com o mundo.

Mudar a palavra muda a coisa. Existem centenas (talvez milhares) de alegorias sobre como d’us mudou o nome das pessoas, mas tem outra menos bíblica e mais “mágica”: a lenda do Golem golmi, palavra hebraica para “matéria, substância”. Na história do judaísmo, apenas o rabino Vilna Gaon5 admitiu de forma pública que havia tentado criar um Golem. Todas as outras lendas foram recontadas por terceiros, geralmente alunos dos mestres, anos após o ocorrido. Mas, em geral, a lenda segue a mesma fórmula:

  • argila a palavra “argila” não tem correspondente?
  • emet palavra escrita na testa do Golem
  • o “monstro” é incapaz de falar
  • palavras escritas colocadas em um papel na boca
  • fazer tarefas repetidas
  • aberração, destruição
  • ‘emet -> met alef apagado da testa do Golem

Então, assim como qualquer outra ideia ou “forma-pensamento”, podemos dar vida a um Golem imprimindo-lhe energia através da palavra. O Golem não é apenas metáfora da materialização dos desejos. O judaísmo é uma religião muito materialista. Não conceberia a ideia de gênios mágicos, como o de Aladim, capazes de criar algo do nada. O judaísmo acredita em por a mão na massa. Literalmente. Quando a “palavra” do judeu encontra uma “substância” que possa dar-lhe forma, a palavra ganha vida própria. Por isso, o judeu não deve xingar, falar mal ou desejar o mal de outras pessoas.

Do ponto de vista prático, colocar algo em palavras significa dar forma a uma ideia neste mundo, nem que seja apenas na forma de ondas sonoras, vibrações no ar, manchas de grafite na celulose, variações eletromagnéticas ordenadas. A palavra é, em si, uma coisa material. E coisas materiais mudam o mundo. Quando D’us deu um novo nome a Abrão e a sua esposa Sarai, mais do que quaisquer provações mágicas, mudou a forma com que Abrão e Sarai viam a si mesmos. Abraão e Sarah eram novas pessoas, prontas para novos desafios e com um propósito claro.

Elu v’elu d’vrei elohim chayim // Estas são e estas são palavras do D’us vivo.

Afinal, Cabala ainda é mera poesia.

  1. Dvarim 
  2. Dvar 
  3. Maimônides. 
  4. E, daqui, fica clara a representação dos mandamentos em forma de listas de 10 palavras. 
  5. 1720-1797 

Shbaa.

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