Para os nórdicos, a magia era parte do cotidiano. Não tinham ordens e iniciações – era vista como uma habilidade que poderia ser aprendida por qualquer um que tivesse acesso (normalmente, a nobreza ou famílias tradicionais); por isso, ao invés de uma única palavra significando “magia”, seu idioma antigo possui várias descrevendo práticas bem específicas cada (embora alguns pesquisadores assumam que a palavra “fjölkynngi” – algo como “conhecimento” – seria usada para a magia em geral). Hoje, entenderemos um pouco mais sobre algumas dessas numerosas práticas que chegaram até a nossa época.
Imagem destacada: Ræveðis
É importante frisar que temos muito pouco registro escrito das práticas magísticas escandinavas antigas – a maioria era passado de forma oral. As práticas contemporâneas são reconstruções, partindo de poemas dedicados às runas, relatos mitológicos e diversos sistemas ocidentais. Assim como tudo em relação a tradições e práticas nórdicas, existem divergências e conflitos entre diferentes autores, e nem sempre as práticas de hoje parecerão “coerentes” de um ponto de vista acadêmico.
Outro aviso importante é que a Magia Nórdica é um “sistema pagão“. Está intimamente amarrado com a religiosidade pagã nórdica (ásatrú, heathen, forn siðr, entre outras denominações), sendo impossível dissociar um do outro. Quando removida de uma relação com a espiritualidade nórdica e seus símbolos, muito pouco do potencial das práticas é acessado e uma quantidade grande do conhecimento é perdido. Em outras palavras: nenhuma forma de magia nórdica deveria ser praticada por pessoas que não seguem a religiosidade pagã germânica.
Os diferentes tipos de práticas magísticas não eram isolados entre si. Embora determinadas classes e épocas favorecessem um ou outro, não era incomum um praticante saber várias e inclusive elas se misturavam o tempo todo durante feitiços e rituais. Todos os tipos de magia tinham os mais amplos usos, e entre os relatos mitológicos, literários e arqueológicos vemos desde encantar uma espada, obter eloqüência, descobrir mentiras, controle climático, amor, curas até maldições.
“Runas você pode encontrar/ e letras auxiliadoras, / letras muito poderosas, / letras muito fortes, / as quais o sábio poderoso pintou / e os deuses fizeram / e que Hroptr dos deuses gravou.” – Hávamál (“Palavras do Altíssimo“), stanza 142; trad.Elton Medeiros

Magia Rúnica: a forma mais conhecida atualmente, consistia da magia escrita – quando uma inscrição era feita com o propósito de consagrar um objeto ou confeccionar um amuleto. A palavra “rún” é polissêmica, com significados tanto associados a “segredo” quanto a “entalhe” – remetendo assim a forma que os caracteres eram escritos, entalhados em uma superfície rígida. É importante lembrar que existem diversos alfabetos rúnicos de diferentes locais e épocas, sendo que a maior parte dos registros estão em younger fuþark. O estudioso das runas – normalmente membro da nobreza – era chamado de rúna-meistari (“mestre-rúnico”).
Não havia uma palavra única que descrevesse a prática como um todo, porém várias descrevendo a destinação das runas (como sigrrúnar – “runas da vitória” – ou málrúnar – “runas da fala”). Embora atualmente usar uma única runa ou uma combinação delas (bandrunar) seja mais comum, registros arqueológicos mostram que era muito comum escreverem um encantamento ou texto inteiro no objeto, muitas vezes em versos. Exemplos mitológicos do uso magístico das runas podem ser encontrados na Völsung Saga (no capítulo em que Sigurdr conhece Brynhild, e para demonstrar sua sabedoria e poder ela canta uma canção revelando seu conhecimento na magia rúnica) e na Egil Saga (a história de Egil Skallagrímsson, um viking e skald mestre-rúnico). O poema éddico Hávamál, entre os versos 138 à 145, descreve o auto-sacrifício de Óðinn para obter as runas – fazendo o trecho ficar conhecido atualmente como Rúnatal.
Os sistemas contemporâneos de magia rúnica foram estruturados a partir dos “Poemas Rúnicos“, escritos provavelmente para a memorização dos alfabetos a partir dos versos. Atualmente, os mais acessíveis são o Poema Rúnico Anglo-Saxão (que apesar de se referir ao fuþork anglo-saxão, é normalmente usado como base para sistemas que usam o elder fuþark), o Norueguês e o Islandês (ambos sobre o younger fuþark, que foi usado durante a Era Viking).
As diferenças entre as práticas do passado e do presente e a concepção das runas como instrumento magístico são discutidas mais profundamente neste texto.
Veja também as introduções a sistemas usando o elder fuþark e o younger fuþark.
Galdr: palavra que possui a mesma raiz de “canto”, define a magia ativada através da voz. Embora atualmente sejam associados as runas e executados através de seus sons (de forma semelhante a mantras), eles podem ser frases recitadas ou mesmo uma canção – na literatura islandesa, chegou a ser criada a galdralag (“métrica para feitiços”). Assim como a Magia Rúnica, atribui-se a Óðinn a criação desse estilo de magia, sendo “Galdrsfaðir” (“Pai dos Galdrar”) um de seus nomes. As sagas islandesas citam que um feitiço de paralisia para ser usado em batalha seria um galdr famoso, e o poema éddico “Gróugaldr” possui o exemplo “Urðar lokurhaldi þer öllum megum, er þú á sinnum ser” (“Que a fechadura de Urðr te proteja, se ficares em perigo” – Trad.Johnni Langer). Em idiomas nórdicos contemporâneos, a palavra “galdr” acabou assumindo um significado geral para “magia”.
Seiðr: o mais polêmico entre os tipos de magia nórdica, consiste nas práticas associadas ao xamanismo, transe e mediunidade, ligadas à deusa vane Freyja; elementos naturais, como ervas, também eram comuns de serem usados. Era um tipo de ritualística que valorizava muito estados alterados de consciência, muitas vezes fazendo uso de alucinógenos para isto. Um homem praticante dessa arte era chamado de “seiðrmaðr”, e uma mulher “seiðrkonna”. Controversas sobre o seiðr vêm de certos mitos e poemas o apontarem como “magia feminina”, indigna dos homens (que seriam excluídos da sociedade caso a praticassem); porém, existem exemplos em sagas onde um seiðrmaðr realiza sua função sem nenhum tipo de tabu ser associado (como a Laxdæla saga, onde o seiðrmaðr Kötkell faz um ritual combinando o seiðr com um galdr para conjurar uma tempestade). Além disso, existem evidências de que rituais hierogâmicos faziam parte das práticas do seiðr, o que obviamente exigiria participação masculina. Minha teoria é que o uso do transe e teor sexual do seiðr teria escandalizado os cristãos em épocas de transição, fazendo com que o estilo fosse demonizado e tornado exclusivamente “coisa de mulheres indignas”.
Porém, ao falar sobre mistérios nórdicos associados a gênero, não podemos deixar de mencionar as völvur (algo como “sibilas“). Assim como as pitonissas helênicas, era um cargo exclusivamente exercido por mulheres e seu ritual oracular envolvia que a praticante entrasse em um transe profundo, fazendo com que fossem associadas ao seiðr. As sagas e eddas costumam a retratá-las com muito respeito e temor, sendo sempre detentoras de segredos que nem mesmo os deuses conhecem (como no poema Baldrs Draumar).
![VegvisirHuld[1]](http://platinorum.com/wp-content/uploads/2016/04/VegvisirHuld1-300x300.png)
Magia Islandesa: também chamada de “galdrastafir“, denomina tradições magísticas envolvendo sigilos muito características da Islândia. Conhecida por sua estética intrincada, foi registrada principalmente em grimórios conhecidos como “Galdrabók” – um dos fatores que os tornam controversos, uma vez que na maioria das vezes são fontes pouco confiáveis dentro da magia. Na época em que se consolidou, a Islândia já havia sido convertida ao cristianismo a séculos – por isso, embora seja possível encontrar diversos resquícios do paganismo neles, são uma pratica predominantemente cristã; muitas instruções para ativação dos sigilos incluíam orações, e vários registros categorizavam as divindades pagãs como “espíritos malignos”. Alguns apontam que certos galdrastafur teriam sido descobertos a partir da “tentativa&erro”. Muitos magistas europeus que seguem o caminho nórdico buscam os meios que eram feitos, e produzem galdrastafur contemporâneos a partir destes registros; inclusive recontextualizando a prática para torná-la pagã.
O contexto histórico e contemporâneo dos galdrastafur é explorado neste texto.
Trolldom: palavra que denomina práticas folclóricas de povos germânicos, com propósitos diversos – desde curas, até buscar o amor, riqueza, maldições ou prever o futuro, além de formas de agradar espíritos e obter sua proteção. Sendo uma forma de magia popular associada com as zonas rurais da Escandinávia, é muito apreciada pela Bruxaria Tradicional e normalmente usava ervas e objetos caseiros. Muitas menções ao trolldom estão em contos-de-fada típicos, embora a partir do século XIX houve uma grande estigmatização às práticas como “meras superstições” ou “malignas”; o prefixo “troll“, embora nos remeta muito aos monstros habitantes dos ermos inimigos dos humanos, é uma palavra complexa que nos idiomas antigos costumava a indicar qualquer coisa sobrenatural ou extraordinária. Embora existam manuscritos de trolldom, a maior parte do conhecimento continua sendo oral.
Espero que estas pequenas introduções tenham tirado algumas dúvidas, e sirvam de ponto de partida para pesquisas futuras!
Sjáumst bráðlega!
—Ravn
1 comentário
Sou cada vez mais fã do site. Tenho lido muitos textos, especialmente estes que tratam do paganismo germânico. Parabéns pelo trabalho!
Deixou uma sugestão: criar uma newsletter para que cada vez que sair um novo texto, os leitores sejam avisados.
Grande abraço!